Quem pode mais?
Nos últimos dias, a guerra travada entre o governo e o Supremo Tribunal Federal alcançou o ponto máximo de ebulição. Numa disputa de “quem pode mais”, cada um mostrou suas garras e dentes na tentativa de medir forças – não sem ameaças à ordem democrática. Em meio à tragédia do coronavírus a ceifar milhares de vidas por dia no país, a queda de braço assumiu ares de crise institucional. Na manhã de quarta-feira, 27, o ministro do STF Alexandre de Moraes colocou novamente em marcha o chamado “inquérito do fim do mundo”, aquela investigação inconstitucional instaurada em março de 2019 pelo presidente da corte, Dias Toffoli, dentro da qual cabe tudo – coube até uma injusta e escandalosa censura a Crusoé e O Antagonista. Ao apanhar os pontas de lança dos núcleos ideológico, político, operacional e financeiro do bolsonarismo, o Supremo alcançou os calcanhares do presidente e dos seus filhos distinguidos por ordem numérica de nascimento. Deflagrada na esteira de uma série de ataques do governo ao tribunal, a ação de Moraes soou como uma resposta política a Bolsonaro.
A reação veio em tom decibéis acima. Sempre pronto a testar os limites da democracia, Bolsonaro, em reunião ministerial extraordinária na quarta, 27, discutiu maneiras de não cumprir a determinação de Alexandre de Moraes para que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, prestasse depoimento em cinco dias à Polícia Federal por ter afirmado na reunião de 22 de abril que, por ele, botaria todos “vagabundos” na prisão, “começando pelo STF”. O presidente ainda cogitou, em mais uma clara afronta ao Supremo, alçar ao comando da PF o atual diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, cuja nomeação foi invalidada pelo próprio Moraes. No encontro com os ministros, desta vez sem câmeras de gravação, Bolsonaro disparou impropérios contra o Judiciário e exortou as Forças Armadas a agir para evitar o que classificou como “golpe”.
Insuflado pelo presidente, o novo ministro da Justiça, André Mendonça, tentou dar ares de legalidade à tentativa do Planalto de contrariar a determinação do STF: na madrugada seguinte, entrou com um habeas corpus preventivo para impedir o depoimento de Weintraub, numa espécie de blindagem jurídica para que o colega possa se recusar a falar à PF sem ser preso. Na ação em que chamou os ataques ao Supremo de “liberdade de expressão” e “crítica construtiva”, Mendonça pediu também a exclusão de Weintraub da investigação, bem como de todos os demais alvos do inquérito, incluindo bolsonaristas que sofreram buscas por críticas ao STF nas redes sociais. O gesto constituiu um lance capital da troca de chumbo entre os dois poderes. Sob os olhos de todos, sem fazer cerimônia, o governo decidiu afrontar uma decisão judicial. Ou seja, a guerra foi declarada. E com um ministro da Justiça fazendo as vezes de advogado de defesa, formalmente.
No meio político, situações como as vivenciadas nas últimas horas reforçam o temor de que, em algum momento, o estado de direito se converterá em estado de arbítrio no país. Quando o presidente diz em alto e bom som que “as Forças Armadas não podem aceitar um golpe dos demais poderes” e fala em não cumprir “ordens” do Supremo, há no Congresso quem reconstitua o ano de 1964, quando todos os lados tinham a carta do golpe na mão. Pairava a dúvida sobre quem ia acioná-la, até que um general voluntarioso implodiu a ordem constitucional. Convencido de que estava blindado por um “dispositivo militar” organizado pelo general Assis Brasil, então chefe da Casa Militar, João Goulart esticou a corda, ao estilo Bolsonaro, ao propor reformas “na lei ou na marra”, gerando instabilidade política no país e atiçando os quartéis. No dia 1º de abril, viu-se que o dispositivo existia, só que para apoiar quem estava do outro lado da trincheira.
Bolsonaro, como Jango, escora-se sempre que pode nas Forças Armadas, embora elas emitam sinais ambivalentes. Por exemplo, entre os temas que o presidente abordou na reunião ministerial de 22 de abril estava uma interpretação distorcida do artigo 142 da Constituição que fala do papel das Forças Armadas. “Nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil”, disse ele. Para Bolsonaro, as Forças Armadas estariam constitucionalmente autorizadas a intervir a qualquer momento, como se fossem um poder moderador, capaz de arbitrar conflitos entre os poderes.
Nunca na história recente do país se invocou tanto Montesquieu e a sua concepção da harmonia entre poderes, mas eles, em especial Executivo e Judiciário, nunca estiveram tão em choque como agora. A conflituosa relação entre governo e STF, baseada em altos e baixos, sístoles e diástoles, remonta ao início do governo Bolsonaro. O próprio “inquérito do fim do mundo”, que agora estreita o cerco sobre o entorno do presidente, surgiu da necessidade de manter a espada de Dâmocles sobre a cabeça de Bolsonaro, num momento em que a cúpula do Supremo apenas desconfiava de que o Planalto cresceria para cima da corte terceirizando a ofensiva: os ataques caberiam aos milicianos digitais do bolsonarismo, comandados pelo “gabinete do ódio”, ao qual Moraes chamou de “associação criminosa”, no despacho de quarta, 27. Àquela altura, início de 2019, ainda estavam vivas na memória dos ministros as declarações de Eduardo Bolsonaro de que bastavam um soldado e um cabo para fechar o Supremo.
As placas tectônicas, no entanto, foram por um bom período acomodadas graças à atuação de bastidores do presidente Dias Toffoli com o apoio do ministro Gilmar Mendes. Depois de serem alvos da Receita Federal, os magistrados conseguiram alinhavar um armistício. Seguiu-se a suspensão dos inquéritos com base em dados do Coaf, entre eles o que tisnava a imagem do primogênito do presidente, Flávio Bolsonaro. Foi uma maneira também de começar a limitar ali as ações do então ministro da Justiça, Sergio Moro, a quem setores do tribunal fazem reservas em razão de sua atuação como juiz implacável da Lava Jato. Como contrapartida, por ordem expressa do Planalto, a Receita parou de importunar os magistrados – e suas respectivas mulheres também na mira. Embora Toffoli ainda seja um interlocutor frequente, a quem o presidente recorre quando que se vê em apuros, o período de calmaria não durou para sempre. A decisão em que Alexandre de Moraes barrou a nomeação de Ramagem, nome do coração de Bolsonaro para a direção da PF, teve o condão de estremecer novamente a relação entre o STF e o Palácio do Planalto.
Ex-assessor de Toffoli e espécie de árbitro das tensões entre o Planalto e Supremo, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, chancelou a nota de Heleno. Dois dias após a divulgação do vídeo da barulhenta reunião, Bolsonaro reproduziu o artigo 28 da Lei de Abuso de Autoridade que trata como crime “divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir”. Com razão, o post foi lido como um recado para Celso de Mello. Como o vídeo tornado público guarda total relação com o objeto do inquérito, é difícil que qualquer eventual ação nesse sentido prospere, mas o presidente subia ali mais uma escala na provocação ao Supremo.
Em um novo capítulo da guerra, a semana começou com Bolsonaro apresentando suas armas. Na segunda-feira, 25, o presidente – como se dissesse “ele está comigo” – fez uma visita inesperada ao procurador-geral da República, Augusto Aras, personagem-chave do inquérito que investiga a interferência do presidente na PF. Cabe a ele denunciar ou não Bolsonaro, Em afagos trocados via videoconferência, depois que o presidente se convidou a dirigir-se pessoalmente até o seu gabinete, Aras disse esperá-lo com a “alegria de sempre”. Cabe aqui um parêntese: nomeado por Bolsonaro para um mandato de dois anos, Aras só foi indicado após demonstrar rezar na cartilha do presidente. Ele tem em mente que sua recondução ao cargo em 2021, ou mesmo sua indicação para uma cadeira no Supremo, está associada ao que fizer durante as investigações em curso. Nos últimos dias, o PGR mostrou alinhamento aos anseios do presidente, mesmo contrariando suas próprias posturas pretéritas.
Na prática, o presidente quis e quer escancarar que, nesta guerra de poderes, é ele quem tem mais força. Faz questão de alardear que estão ao seu lado nada menos do que a PGR, agora a PF, removido o “obstáculo Sergio Moro”, as Forças Armadas, a Abin, o Congresso – depois de cooptar o Centrão e manter Rodrigo Maia, presidente da casa, em confortável distância regulamentar. E a lei, é claro, uma vez que o próprio Bolsonaro já afirmou que ele é a Constituição. É por estar sentindo-se protegido que o presidente ousa enfrentar o Supremo, dizendo abertamente quando vai ou não cumprir as ordens do tribunal. Do outro lado da Praça dos Três Poderes, o STF também se pinta para a guerra e tenta reagir com as munições à disposição. Ao longo da semana, não foram poucas as declarações contundentes de Celso de Mello, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Carmen Lúcia contra os ataques desferidos à corte. Ao fim, a estrepitosa operação da lavra de Moraes, ao alcançar expoentes do bolsonarismo nas redes e também fora delas, foi a maneira encontrada por setores do tribunal de ostentar seu arsenal na briga.
Na ação, Moraes contou com a ajuda de uma PF blindada às intromissões nada republicanas de Bolsonaro. Nos inquéritos comandados pelo ministro, quem toca a PF é Igor Romário de Paula, do Serviço de Inquéritos Especiais, grupo responsável pelas investigações que envolvem políticos com foro privilegiado e tramitam no STF. Romário permaneceu no posto graças a um trabalho de bastidores que contou com os esforços também de Celso de Mello. O temor era de que, com as mudanças na cúpula da polícia, o trabalho passasse a ser feito por gente alinhada com o Planalto.
Bolsonaro pode até falar grosso, mas no momento em que sua popularidade derrete – 43% dos brasileiros consideram o governo ruim ou péssimo – a operação autorizada pelo STF lhe abre um novo flanco em meio a várias frentes de risco. O material coletado no inquérito é fonte de preocupação para o gabinete presidencial. Aguarda-se para os próximos capítulos a quebra dos sigilos dos patrocinadores da horda bolsonarista nas redes e o mapeamento de toda a engrenagem de ataques e destruição de reputações. O governo sabe ainda que parte dos documentos apreendidos corre o risco de desaguar no TSE e servir para turbinar processos de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão. Na corte eleitoral, o recém-empossado presidente Luís Roberto Barroso, crítico contumaz dos excessos cometidos pelo Poder Executivo, conta com o delegado Disney Rosseti, nome sugerido por Sergio Moro e pelo ex-diretor-geral Maurício Valeixo para o comando da PF e rejeitado pelo Planalto.
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