O mistério do relatório
Quase um ano e meio após vir à tona o primeiro documento apontando os indícios da prática de “rachid” dentro do antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio, o caso Queiroz voltou a assombrar a família presidencial. Em meio a inúmeras tentativas de barrar a investigação na Justiça, dezenas de quebras de sigilos bancário e fiscal e busca e apreensão em endereços ligados ao filho 01 do presidente Jair Bolsonaro reforçaram as suspeitas sobre os crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa por meio da retenção de parte do salário de assessores.
Ainda sem desfecho, a conturbada apuração que teve como origem as movimentações financeiras atípicas de Fabrício Queiroz expostas em um relatório sigiloso do Coaf ganhou um novo capítulo no último fim de semana. Segundo o empresário Paulo Marinho, ex-aliado do clã Bolsonaro, um delegado da Polícia Federal simpatizante do presidente alertou assessores de Flávio, em outubro de 2018, que as transações de Queiroz figuravam no arquivo de inteligência financeira que embasaria uma mega-operação da Lava Jato fluminense contra deputados estaduais acusados de corrupção. Foi por sugestão do informante, relatou Marinho, que Queiroz e a filha foram exonerados do gabinete de Flávio e do próprio Bolsonaro logo após o suposto vazamento. A operação mencionada pelo delegado ocorreu três semanas depois, mas não envolveu nem Flávio nem o homem de confiança da família até então. Na verdade, a investigação que mirava a dupla corria a poucos quilômetros da sede fluminense da PF, no prédio do Ministério Público do Rio.
Enquanto a própria PF e o Ministério Público Federal investigam o suposto vazamento do inquérito para Flávio Bolsonaro, contado por Marinho em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Crusoé refaz o caminho do famigerado relatório do Coaf que ainda atormenta o presidente e seus filhos. O RIF, como é chamado o relatório de inteligência financeira, foi elaborado no dia 3 de janeiro de 2018 pela equipe do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, e enviado para quatro órgãos de investigação: MPF, PF, Receita Federal e MP estadual, como comunicação espontânea, ou seja, quando o próprio órgão detecta movimentações suspeitas a partir dados enviados pelos bancos e encaminha aos investigadores.
O relatório era extenso. Trazia em 422 páginas o histórico de um ano de transações atípicas envolvendo 545 pessoas, a grande maioria servidores e ex-servidores da Assembleia do Rio que possuíam contas bancárias na agência do Itaú dentro da própria Alerj. O que mais chamou a atenção das autoridades foi o padrão parecido das movimentações: transferências de dinheiro feitas entre os próprios funcionários de gabinete, incompatíveis com a renda, saques vultosos e muitos depósitos em espécie. O nome de Fabrício de Queiroz no relatório aparecia como “titular da movimentação suspeita” do 20º núcleo político de assessores que caíram na malha-fina. Logo ao lado, havia menção ao gabinete de Flávio Bolsonaro como seu local de lotação na Alerj e o valor total das transações suspeitas: 1,2 milhão de reais, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017.
Os registros mostram que, no dia 9 de agosto de 2018, Xênia e outros dois delegados anexaram o primeiro relatório do Coaf ao pedido de quebra de sigilos bancário, fiscal e telefônico de uma série de investigados no inquérito dos deputados. Essa solicitação resultaria, tempos depois, na Operação Furna da Onça. O processo, assim como todos os outros relacionados ao esquema de Cabral, estavam sob a relatoria do desembargador Abel Gomes, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Segundo Paulo Marinho, o delegado que teria vazado a investigação para Flávio disse em um encontro com assessores do senador na frente da sede da PF no Rio, uma semana após o primeiro turno das eleições presidenciais, que a Furna da Onça seria adiada para depois do segundo turno para não impactar no pleito. Em nota, o desembargador disse que a operação, realizada no dia 8 de novembro de 2018, foi deflagrada no momento mais “oportuno” conforme entendimento conjunto entre a Justiça, a PF e o MPF.
Com as quebras de sigilo, a PF descobriu, em setembro de 2018, que, além do esquema de mensalinho, havia a prática disseminada de “rachid” na Alerj, com nomeação de funcionários fantasmas e devolução de parte dos salários para assessores de alguns gabinetes. Tanto a PF como o MPF alegaram não terem seguido com a apuração sobre o esquema de rachid, que incluiria o gabinete de Flávio Bolsonaro, porque o crime de peculato, nesse caso, seria de competência da Justiça estadual e, portanto, não tinha como ser investigado. O caso, então, ficou exclusivamente sob investigação da Promotoria local.
No MP estadual, após chegar em janeiro de 2018, o relatório do Coaf ficou transitando até maio do mesmo ano entre o Grupo de Atribuição Originária em matéria Criminal, o Gaocrim, e o Laboratório de Lavagem de Dinheiro da instituição, mas sem produção de nenhuma nova informação. Somente em 30 de julho de 2018, quando o Coaf envia o segundo RIF citando Flávio e Queiroz, é que foi aberta uma investigação formal sobre o suposto “rachid” no antigo gabinete do filho do presidente. Era no Gaocrim que estava a investigação sobre as movimentações financeiras detectadas no relatório do Coaf à época do suposto vazamento e da demissão de Queiroz, em 15 de outubro de 2018. Entre julho e novembro do mesmo ano, os promotores praticamente não mexeram no inquérito. Foi apenas apenas no dia 22 de novembro de 2018, semanas após a deflagração da Furna da Onça, que Queiroz foi notificado para depor no dia 4 de dezembro, mas pediu para remarcar a oitava para o dia 6, exatamente quando o relatório do Coaf veio a público. Queiroz nunca compareceu ao Ministério Público e se manifestou aos promotores apenas uma vez por carta, na qual admite ter arrecadado dinheiro dos demais funcionários do gabinete de Flávio para contratar assessores externos e ampliar a atuação política do então deputado. Segundo Queiroz, tudo foi feito sem o conhecimento de Flávio e os pagamentos aos supostos assessores eram feitos em dinheiro vivo, sem nenhum recibo.
Em dezembro passado, Crusoé revelou, a partir da quebra de sigilo, detalhes das transações financeiras feitas pelo grupo. Pela primeira vez era possível ver com mais clareza por qual motivo Flávio tentava, desde a demissão de Queiroz, se descolar do até então assessor e motorista e suspender a investigação. As quebras revelavam por exemplo, que Queiroz recebera 2 milhões de reais em 483 depósitos de funcionários do gabinete a partir de 2007. Desse total, 200 mil reais foram repassados pela ex-mulher e pela mãe de Adriano da Nóbrega, miliciano morto por policiais em uma operação na Bahia. O MP afirma ainda que o Queiroz e Nóbrega tentaram embaraçar as investigações ao agir para que a ex-mulher do miliciano não fosse depor. Para os promotores, não resta dúvida de que o filho do presidente é o líder do esquema de “rachid” e teria lavado o dinheiro arrecadado por Queiroz em duas frentes — parte em dois imóveis e parte na loja de chocolate. Os promotores ainda afirmam que um PM investigado pagou uma parcela de um imóvel do senador e detalham diversos indícios de irregularidades em transações envolvendo o senador.
Entre os que acompanham o caso, o novo capítulo com a acusação de Paulo Marinho sobre o suposto vazamento pela PF mostra como a investigação ainda atormenta a família Bolsonaro. Embora acreditem que seja difícil provar quem vazou, pessoas envolvidas no caso têm três certezas: 1. De alguma forma existiu o vazamento e, por isso, Flávio correu para demitir Queiroz; 2. Novas tentativas de parar a investigação virão; e 3. Mesmo que Marinho não comprove o que disse, novas dores de cabeça virão em breve para o clã presidencial com a denúncia que os promotores estão preparando. É uma história que, de uma forma ou de outra, ainda vai render muito.
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