Divulgação/Chris Granger"O acesso a informações confiáveis permite que as pessoas se preparem e tomem medidas individuais, mesmo quando o governo as decepciona"

A verdade salva vidas

Para o historiador americano John M. Barry, autor de um clássico sobre a gripe espanhola, governantes que dizem a verdade são os que mais conseguem evitar que seus governados morram
22.05.20

Professor da Universidade de Tulane, em Nova Orleans, o historiador John M. Barry também vem trabalhando com governos americanos nos últimos anos. Depois que seu livro A Grande Gripe – A história da gripe espanhola, lançado em 2004, tornou-se uma referência no assunto, ele passou a ser convidado a integrar comitês de especialistas com a missão de assessorar presidentes na tomada de decisões em tempos críticos. Trabalhou nas administrações do republicano George W. Bush e do democrata Barack Obama, ajudando a traçar planos preventivos. Na epidemia de H1N1, em 2009, Barry participou de discussões sobre quais seriam as melhores políticas a adotar Depois da crise, foi chamado a identificar as lições que poderiam ser tiradas do episódio.

Essas lições foram incluídas posteriormente em um novo e último capítulo de A Grande Gripe, que acaba de ser lançado no Brasil. Para Barry, de 73 anos, é essencial que os governantes digam a verdade durante uma pandemia. “O terror cresce no escuro da mente, é como uma besta desconhecida nos arrastando para uma floresta”, escreveu ele. “Mas, como nos filmes de terror, uma vez que o monstro aparece, o terror se condensa em algo concreto e diminui. O medo continua, mas o pânico gerado pelo desconhecido se dissipa. O poder da imaginação arrefece.”

Nesta conversa com Crusoé, Barry afirma que muitos governantes atuais têm falhado em dizer a verdade, o que atrapalha o combate ao coronavírus. “Contar a verdade salva vidas”, diz. Para o historiador, as pandemias são um momento único de colisão entre a natureza e a ciência. Ele acredita que a ciência vencerá essa batalha dentro de um ano ou pouco mais, com uma vacina ou um remédio, mas que um novo vírus vindo de um lugar desconhecido poderá demonstrar um poder ainda mais devastador.

Governantes do mundo todo estão enfrentando intensa pressão da sociedade para derrotar a pandemia de Covid-19. Eles estão reagindo de maneira correta?
As políticas têm variado muito pelo mundo. Muitos países, como Coreia do Sul, Taiwan e Singapura, assim como democracias livres do Ocidente, como a Alemanha, anteciparam-se ao vírus. Eles conseguiram conter a sua disseminação e salvar vidas. Em outras nações, principalmente o Brasil, os líderes enterraram a cabeça na areia e ignoraram o óbvio. Os Estados Unidos estão em lugar intermediário entre o Brasil e a Alemanha. O presidente Donald Trump tem feito alguma coisa, mas não tem demonstrado liderança e tem desprezado a ciência. Algo semelhante ocorreu em 1918. Na gripe espanhola, os governos ou estavam inoperantes ou estavam ativamente enganando as pessoas, mentindo descaradamente para os seus cidadãos. Naquela época, pelo menos, os líderes nacionais tinham uma guerra para usar como desculpa para justificar suas falhas.

Qual é a melhor política a ser adotada durante uma pandemia?
Contar a verdade salva vidas. Por um lado, o acesso a informações confiáveis permite que as pessoas se preparem e tomem medidas individuais, mesmo quando o governo as decepciona. Por outro lado, se um governo emite uma ordem e quer que o público obedeça, então as pessoas precisam confiar no governo. Sem isso, elas podem ignorar a ordem. Quando um governo mente, o povo deixa de confiar na autoridade. Na pior das hipóteses, a mentira pode alienar as pessoas, fazer parecer que é cada um por si, o que pode desintegrar a sociedade. Na gripe espanhola, a cidade de São Francisco, na Califórnia, foi a mais honesta e eficiente em lidar com a pandemia. Muitos achavam que a doença não passava de uma gripe comum. Então, um anúncio da prefeitura, da Câmara de Comércio e da Cruz Vermelha publicado em uma página inteira de jornal pediu: “Use a máscara e salve sua vida”. Apesar das mortes, havia um sentimento de que a situação estava sob controle, enquanto um medo paralisante predominava em outras cidades. Quando as escolas da cidade fecharam, professores se ofereceram voluntariamente para trabalhar como telefonistas, motoristas de ambulância e enfermeiros. A cidade teve bem menos mortes que o esperado.

DivulgaçãoDivulgação“Gripezinhas não matam pessoas. Este vírus, sim, mata”
Quais governos estão faltando atualmente com a verdade?
Há muitas inverdades saindo da Casa Branca, nos Estados Unidos, embora funcionários de outras áreas do governo, como o Instituto Nacional de Saúde, estejam dizendo a verdade. O presidente do Brasil parece estar liderando mundialmente na forma como tem enganado as pessoas. Jair Bolsonaro menosprezou a pandemia ao compará-la com uma gripezinha. Mas gripezinhas não matam pessoas. Este vírus, sim, mata. Outros governos também não têm ido bem nesse quesito, começando pela China, que ocultou a verdade no início da pandemia.

Como o sr. avalia as atitudes do governo da China nesta pandemia?
Não sei por que o Partido Comunista agiu dessa maneira, mas o mundo inteiro está decepcionado. Depois da SARS, em 2003, acreditou-se que eles teriam aprendido uma lição importante. Daquela vez, a China mentiu no início do surto e escondeu a doença. A sinceridade dos chineses melhorou muito em seguida e eles cooperaram com outros países em relação a inúmeras ameaças que podiam gerar pandemias ainda mais letais do que a atual. Com o novo coronavírus, claramente, a China regrediu. Não sei se foi por incompetência ou por estratégia.

Alguns governantes têm promovido drogas sem fortes evidências científicas. Trump disse que está tomando hidroxicloroquina e zinco. Na Venezuela, Maduro defende a cloroquina e o interferon cubano. No Brasil, seguidores do presidente Jair Bolsonaro cantam canções a favor da cloroquina durante manifestações. Esse tipo de atitude aconteceu no passado?
Nada disso ocorreu em 1918. Agora, a Food and Drug Administration (a FDA, entidade similar à Anvisa), que faz parte do governo americano, emitiu recentemente um aviso contradizendo Trump. Esse medicamento em particular demonstrou pouca eficácia contra a Covid-19. A substância ainda está sendo estudada e seus efeitos colaterais podem matar.

Em seu livro, o senhor concluiu que “uma ferramenta inútil é a quarentena generalizada”. Qual é a sua opinião hoje sobre essa medida?
O coronavírus é um vírus diferente e as circunstâncias são muito distintas. Desta vez, várias medidas de controle de saúde pública, incluindo a quarentena, provaram ser muito eficazes, especialmente quando empregadas rapidamente.

Chris GrangerChris Granger“Acho que a tecnologia moderna provavelmente será capaz de dar uma resposta em um tempo incrivelmente curto”
Se uma vacina for desenvolvida no curto prazo ou um medicamento se mostrar eficiente, as medidas de isolamento poderão ser elogiadas por terem salvado vidas?
Certamente.

Como a pandemia pode alterar a política dos Estados Unidos neste ano eleitoral?
Acho que Trump demonstrou uma incompetência quase incompreensível ao responder à pandemia. Da mesma forma, ele agora está tentando animar sua base eleitoral e culpar todos os demais pelos problemas existentes, da Organização Mundial de Saúde aos governadores. Não acho que essa estratégia vá funcionar. Dos 50 governadores americanos, 49 têm uma aprovação popular maior que a do presidente, quando se avalia a forma como estão lidando com a crise.

Isso deve afetá-lo na tentativa de se reeleger?
A reeleição é possível. Mas os erros de Trump na gestão da crise prejudicaram seriamente suas chances. Em contraste, na Alemanha, a chanceler Angela Merkel tem obtido altos índices de aprovação por ter sido transparente e mostrado liderança.

O senhor afirma no livro que a gripe espanhola foi “a primeira colisão entre a natureza e a ciência moderna”. Quem está vencendo a batalha atual?
A ciência vencerá esta batalha específica em um ano ou pouco mais, mas a natureza sempre vence no final. Cedo ou tarde, surgirá outro vírus que virá de um lugar desconhecido e matará mais gente.

Esta pandemia mudará as estruturas de nossa sociedade? Ou quem diz isso está exagerando?
É cedo demais para dizer. Se uma vacina eficaz chegar em breve, as mudanças podem ser mínimas. Caso contrário, o impacto poderá ser bastante dramático.

O desenvolvimento da ciência nos últimos 100 anos reduziu nossa tolerância à morte?
Às vezes, ficamos surpreendidos com o fato de que nossa tecnologia não pode salvar a todos, o tempo todo, mesmo com todos os recursos disponíveis. A população em geral está um tanto espantada com isso. Por mais avançados que acreditamos ser, podemos ser muito impotentes diante de um novo patógeno. Mas acho que a tecnologia moderna provavelmente será capaz de dar uma resposta em um tempo incrivelmente curto. Enquanto isso, é claro que muitos irão morrer.

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