A coincidência

Sim, é preciso averiguar a fundo os contratos emergenciais milionários do governo Wilson Witzel para combater o coronavírus. Mas na investigação sobre o governador aberta pela PGR de Augusto Aras há uma coincidência: tudo bate com um dossiê que passou pelo gabinete de Jair Bolsonaro. O Planalto mandou investigar o governador que virou inimigo do presidente?
22.05.20

Não foram poucas as vezes que o presidente Jair Bolsonaro cobrou publicamente investigações sobre os gastos emergenciais feitos pelos governadores durante a pandemia. Isolado na luta contra a quarentena adotada pelos estados, o presidente tem se escorado no farto noticiário sobre malfeitos envolvendo contratos firmados sem licitação por causa da situação de calamidade para atacar os chefes dos governos estaduais. Apesar da vasta lista de adversários políticos, no último dia 13, ele pontuou o seu alvo preferencial, em uma daquelas falas matinais em frente ao Palácio da Alvorada. “O Rio de Janeiro é um estado fértil para a Polícia Federal trabalhar”, disse o presidente, entre perguntas sobre sua suposta interferência na PF. As notícias recentes favoreciam a ofensiva de Bolsonaro contra o governador Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, um ex-aliado que virou seu inimigo figadal.

Na semana anterior, o ex-subsecretário de Saúde do Rio havia sido preso em uma operação do Ministério Público estadual, acusado de fraude na compra de respiradores. Mas o maior trunfo de Bolsonaro contra Witzel viria horas mais tarde, naquela mesma quarta-feira, quando o Superior Tribunal de Justiça, em decisão até então mantida em segredo, autorizou a abertura de um inquérito sigiloso contra o próprio governador a pedido da Procuradoria-Geral da República. O mais intrigante é que os indícios que embasaram o pedido de investigação da PGR não tinham relação direta com o que fora descoberto pelos promotores fluminenses, mas com o conteúdo de um dossiê que havia aportado dias antes no Palácio do Planalto.

As suspeitas recaem sobre um contrato de 770 milhões de reais assinado pelo governo Witzel com o Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde, o Iabas, para construir e gerir os hospitais de campanha destinados aos pacientes da Covid-19, como o do Maracanã. O Iabas é uma organização social que administra unidades públicas de saúde mediante vultosos contratos de terceirização. Vez ou outra, aparece associado ao mau uso do dinheiro público. Foi assim em 2018, quando um conselheiro da entidade foi preso acusado de desviar 6 milhões de reais da prefeitura carioca, e no mês passado, quando o Tribunal de Contas fluminense destacou que o instituto só havia detalhado 2,5% do custo total dos leitos emergenciais contratados por Witzel.

O inquérito que mira o governador do Rio foi instaurado pela Procuradoria-Geral da República no dia 12 de maio. Foi um despacho interno que deu origem à apuração – no jargão oficial, a investigação foi instaurada “de ofício”. Não é algo propriamente raro no topo do Ministério Público Federal, mas normalmente casos assim começam a partir de denúncias, sejam elas anônimas ou não, ou de representações enviadas pelas procuradorias nos estados ou por outros órgãos. A coincidência que chama a atenção, nesse caso, é que o objeto da apuração da PGR é o mesmo descrito no tal dossiê que foi oferecido dias antes ao gabinete do presidente Jair Bolsonaro. O material foi levado ao Planalto por aliados muito próximos do presidente, com os quais Crusoé conversou. O próprio Bolsonaro foi avisado e afirmou que era preciso “tomar providências”.

Agência BrasilAgência BrasilO hospital de campanha do Maracanã, do Iabas: serviço deficiente
Havia riqueza de detalhes. E indicações de que uma investigação bem feita a partir do Iabas poderia levar a rolos milionários no Rio e em São Paulo, envolver direta ou indiretamente os governadores Witzel e João Doria, e enredar ainda outros adversários do presidente. O dossiê fazia menção ao lobista Roberto Bertholdo, que, a partir de uma mansão no Lago Sul de Brasília, estaria operando em favor do instituto. Sua função seria abrir caminhos com políticos para que o Iabas ganhasse contratos emergenciais durante a pandemia. Nessa parte do relato, apareciam nomes de outros desafetos do Planalto que, no julgamento dos portadores do material, poderiam ser arrastados para o centro da confusão. Entre eles, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e a deputada Joice Hasselmann. Ambos seriam, sempre de acordo com a denúncia, frequentadores da casa do lobista. A Crusoé, Maia negou que já tenha ido ao local e Joice disse que Bertholdo lhe emprestou a mansão para um churrasco com correligionários no ano passado.

O dossiê apontava ainda para Luiz Henrique Mandetta, que tinha acabado de deixar o governo em rota de colisão com o presidente. Dizia que o tal lobista, um velho conhecido da polícia, estaria usando contatos privilegiados no DEM, o partido de Maia e do ex-ministro, para facilitar contatos no Ministério da Saúde. O material foi entregue a um funcionário graduado do gabinete presidencial por uma pessoa muito próxima do presidente da República que, segundo ela própria relatou a Crusoé, prometeu encaminhar tudo, imediatamente, aos órgãos de investigação e controle. Criou-se, a partir de então, a expectativa de desdobramentos.

A investigação da Procuradoria-Geral da República que mira Witzel e o Iabas coincide exatamente com o período em que o dossiê foi entregue no gabinete de Bolsonaro mediante a promessa de que tudo seria passado a limpo. Crusoé perguntou à PGR se o gabinete de Augusto Aras recebeu do Planalto o material, e se foi a partir daí que a investigação começou – Bolsonaro e o procurador-geral da República mantêm uma relação estreita. Extraoficialmente, fontes a par da investigação disseram inicialmente que a apuração teria sido iniciada a partir de informações vindas do Rio de Janeiro. Oficialmente, porém, a versão da Procuradoria é outra: sustenta que a apuração começou a partir de levantamentos internos da própria PGR e que só depois de instaurado o inquérito foram anexadas informações enviadas pelo Ministério Público Estadual do Rio, que havia deflagrado uma operação dias antes e esbarrado em indícios de irregularidades envolvendo o governador.

A coincidência entre o dossiê entregue ao Planalto e a investigação sobre Witzel iniciada pela equipe de Augusto Aras não para aí. Crusoé apurou que há outros pontos que ligam o material entregue no gabinete presidencial à apuração da Procuradoria. Por exemplo: um dos alvos da investigação da PGR, ainda que essa linha de investigação seja tênue por ora, é justamente o lobista Roberto Bertholdo. No dossiê, além dos relatos sobre a proximidade de Bertholdo com políticos, havia a cópia de um documento ligando formalmente o lobista ao instituto. Trata-se de um contrato para prestação de “consultoria jurídica” em processos do Iabas junto aos órgãos de fiscalização – o lobista também é advogado. Assinado em julho do ano passado, o papel mostra que para monitorar os casos relativos a apenas um dos hospitais administrados pelo instituto, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Bertholdo recebe do Iabas 46 mil reais por mês de honorários.

O contrato com o lobista: mansão em Brasília e contatos com o mundo político
Suspeitas de desvio de dinheiro público devem ser investigadas, quaisquer que sejam os envolvidos. Por óbvio, o fato de Witzel ou outros personagens ligados à trama serem adversários do presidente não autoriza a leitura de que qualquer investigação sobre eles é fruto de perseguição política. O que chama atenção, porém, são as coincidências. Ainda que os indícios de corrupção mereçam exaustivo exame por parte dos investigadores e punição exemplar caso sejam comprovados, não deixam de ser relevantes os sinais de que a investigação oficial sobre o governador possa ter tido origem em um movimento da Presidência da República, à qual a Procuradoria-Geral, hoje, é sabidamente alinhada. Seria um caso escandaloso de uso político da máquina de investigação atualmente sob o comando de Augusto Aras.

Na PGR, a apuração está a cargo da subprocuradora-geral Lindôra Araújo, escolhida por Aras para auxiliá-lo nas investigações criminais – ela é também chefe da equipe da Lava Jato em Brasília e responsável pelos processos que tramitam no Superior Tribunal de Justiça. O pedido de abertura do inquérito que investigará Witzel, o Iabas e tudo o mais que se descobrir na órbita do instituto foi enviado ao STJ no dia 12, e já no dia seguinte o ministro Benedito Gonçalves autorizou o início da apuração, que correrá na corte porque é lá que correm os procedimentos criminais envolvendo governadores de estado.

O potencial da investigação é imenso. Embora o alvo principal seja Witzel, o inquérito pode abrir muitas frentes alvissareiras. Tanto porque o Iabas mantém contratos milionários com diversos entes públicos, incluindo a prefeitura de São Paulo, quanto pela extensa rede de contatos do lobista. Bertholdo é uma conhecida figura da cena político-policial brasileira. Em 2005, foi preso acusado de lavagem de dinheiro, tráfico de influência e de grampear ilegalmente um juiz federal de Curitiba. A vítima era Sergio Moro, que anos depois ganharia a ribalta nacional com a Lava Jato.

Advogado de ex-deputados mensaleiros, Bertholdo foi condenado pela escuta clandestina no ano seguinte e só voltou a circular em Brasília em 2015. Hoje, a casa do advogado no Lago Sul é frequentada por representantes da velha e da nova política — principalmente por parlamentares do DEM, partido ao qual o vice-presidente do Iabas já foi filiado. O churrasco que Joice Hasselmann admite ter organizado na mansão é um exemplo da estreita conexão de Bertholdo com excelências de diferentes colorações partidárias e correntes ideológicas, de lideranças petistas ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Para a festa, Joice chamou integrantes da bancada do PSL, antes do racha que dividiu o partido. Na CPI das Fake News, indagada sobre sua relação com Bertholdo, Joice classificou o lobista como “um irmão”. A Crusoé, ela disse que não fala com ele há meses.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéAras: investigação foi aberta “de ofício”pela PGR
No caso de Witzel, as suspeitas relacionadas ao contrato com o Iabas envolvem outros personagens, cujos esquemas ainda estão sendo desmantelados. Em 14 de maio, um dia após o STJ autorizar a investigação da PGR, a Lava Jato do Rio deflagrou uma operação na qual prendeu o empresário Mário Peixoto, dono de uma série de empresas fornecedoras do governo estadual desde a gestão de Sérgio Cabral. A investigação traz dois fortes indícios que pesam sobre o governador: o depoimento de um ex-assessor do governo dizendo que Peixoto tinha “forte influência junto ao governador Wilson Witzel” e planilhas com custos dos hospitais de campanha encontradas na caixa de e-mail de funcionários do empresário, sugerindo participação do grupo no contrato milionário do Iabas.

O nome de Witzel também é citado pelos acusados nas escutas telefônicas feitas com autorização judicial. Elas levantam a suspeita de que o governador beneficiou o grupo com atos de governo. “O zero um do palácio assinou aquela revogação da desclassificação da Unir”, disse um dos sócios no dia 24 de março, referindo-se a um despacho publicado por Witzel que permitiu que uma empresa do grupo voltasse a assinar contratos com o estado, medida que contrariou pareceres técnicos. Em outro diálogo envolvendo dois operadores da organização criminosa, no dia 9 de abril, um dos interlocutores comenta que o Iabas havia ficado com a construção dos hospitais de campanha e que Witzel tinha imposto sigilo a todos os contratos emergenciais.

Os trechos envolvendo o governador foram remetidos na semana passada pelo MPF do Rio para a PGR. O mesmo foi feito pelo MP estadual com o depoimento de Gabriell Neves, o ex-subsecretário de Saúde preso há duas semanas por suspeita de desvio de dinheiro na compra de respiradores para os hospitais de campanha. Neves foi ouvido por cerca de seis horas no dia 13 de maio, no presídio de Benfica, e fez revelações que também podem implicar o governador. Em meio ao escândalo dos gastos emergenciais com a Covid-19, Witzel demitiu no último domingo o secretário de Saúde, Edmar Santos. Oficialmente, o governo afirmou que a decisão foi tomada devido a “falhas na gestão de infraestrutura dos hospitais de campanha” e não tem relação com as suspeitas. Witzel nega que tenha relação com os fatos investigados. Diz que já conseguiu bloquear na Justiça os bens dos envolvidos e que suspendeu os pagamentos a todos os fornecedores, cujos contratos estão sendo auditados pelo governo.

Até esta quinta-feira, 21, os advogados de Witzel não tinham conseguido acesso ao inquérito. O governador entende que está sendo perseguido por Jair Bolsonaro. Desde a semana passada, circulam rumores de que ele poderia ser alvo de uma ação da Polícia Federal. Nesta quarta-feira, o deslocamento de um dos aviões da frota da PF de Brasília para o Rio fez aumentar as especulações – a aeronave é normalmente usada no deslocamento de policiais para grandes operações e no transporte de presos importantes. O governador e seu staff se assustaram. Correram para tentar descobrir se havia algum mandado expedido nos autos do inquérito em curso no STJ. A PF informou, depois, que o avião voou ao Rio para buscar equipes que haviam participado de uma operação contra o tráfico de drogas e armas na véspera.

ReproduçãoDoria e Joice: junto com Rodrigo Maia, eles também aparecem no dossiê
A PGR já abriu inquéritos para investigar três governadores por contratações relacionadas ao combate ao coronavírus. Além de Witzel, são investigados os governadores Wilson Lima, do Amazonas, e Helder Barbalho, do Pará, ambos por suspeitas de fraudes e superfaturamento na compra de respiradores.

A apuração sobre os contratos emergenciais do Iabas no Rio de Janeiro pode abrir uma nova frente em São Paulo. Isso porque a prefeitura da capital, administrada pelo tucano Bruno Covas, também contratou o instituto para gerir um hospital de campanha durante a pandemia. O contrato, de 75,2 milhões de reais, envolve 566 leitos provisórios instalados no Anhembi, ao lado do Sambódromo. Parte dos recursos para os contratos emergenciais foi repassada pelo governador João Doria, do PSDB – outro personagem das pistas elencadas no dossiê entregue ao Planalto.

Assim como no Rio, o Iabas ainda administra uma série de unidades públicas de saúde na capital paulista. Só em abril, recebeu 139 milhões de reais dos cofres municipais. A escolha do instituto sem licitação para ampliar sua atuação na pandemia, porém, desconsiderou graves irregularidades que têm sido apontadas há pelo menos quatro anos pelo Tribunal de Contas do Município. Uma auditoria realizada em 2016 constatou, por exemplo, que todo o dinheiro depositado pela prefeitura paulistana vai para contas bancárias no Rio de Janeiro e que, apenas em setembro daquele ano, houve uma diferença de 28,6 milhões de reais entre o valor repassado e o saldo disponível para pagar funcionários e fornecedores.

Enquanto combatem possíveis esquemas de corrupção surgidos em plena pandemia, o que é estritamente necessário, os inquéritos em curso nos estados e, agora, as frentes abertas pela Procuradoria-Geral da República fomentam o discurso propagado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro de que os governadores insistem na estratégia do isolamento social para manter a situação de calamidade e desviar dinheiro por meio de contratos sem licitação. Cabe aos órgãos de fiscalização blindar os inquéritos do incontido desejo palaciano de controlar investigações para proteger os amigos e atacar os inimigos.

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