Marcos Correa/Presidência

‘Vou interferir. Ponto final’

As declarações de Jair Bolsonaro durante a reunião ministerial do dia 22 de abril são explosivas. O presidente fala, sim, em interferir na Polícia Federal, proteger a família e trocar do chefe ao ministro, se preciso
15.05.20

Na noite desta quinta-feira, 14, ao encaminhar ao ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, o pedido para que fosse levantado o sigilo apenas das declarações do presidente da República durante a reunião ministerial do dia 22 de abril, a Advocacia-Geral da União polvilhou a crise com mais um tempero amargo para o governo, com potencial de embaraçar ainda mais Jair Bolsonaro. Em sua manifestação, a AGU transcreve trechos que deixam claro como a luz solar que o mandatário do país, ao contrário do que havia afirmado durante a semana, falou durante o encontro que: 1. Iria “intervir” na PF, pelo fato de a cúpula da corporação não lhe repassar as informações que desejava; 2. Precisava “trocar” para a preservar a “família” e “amigo” e 3. Se fosse preciso, demitiria a cadeia de comando do Ministério da Justiça, do “chefe” ao “ministro” de estado. “Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f. minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o Ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira”, afirmou o presidente na ocasião, conforme a transcrição.

Em declarações ao longo da semana, Bolsonaro tentou disseminar a narrativa de que o termo “segurança” dizia respeito a sua salvaguarda pessoal, o que foi corroborado em depoimento pelos ministros Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo. Foi exatamente o que a Advocacia-Geral tentou fazer ao adotar uma espécie de vazamento seletivo e controlado do material. Ocorre que os trechos separados pela própria AGU, encarregada da defesa do presidente, contribuem para contrariar esse entendimento.

Em outro momento da reunião, de acordo com os extratos, o presidente fala de maneira cristalina em “intervir” e “ponto final”, depois da reclamar da ausência de informações repassadas a ele pela PF. “Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações; eu tenho as inteligências das Forças Armadas que não têm informações, a Abin tem os seus problemas, tem algumas informações, só não tem mais porque tá faltando realmente… temos problemas. A gente não pode viver sem informação (…) Então essa é a preocupação que temos que ter: ‘a questão estratégica’. E não estamos tendo. E me desculpe o serviço de informação nosso – todos – é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça. Não é extrapolação da minha parte. É uma verdade”, concluiu.

Os arroubos do presidente durante a reunião não podem ser extraídos de contexto, como se tivessem sido verbalizados de forma aleatória desprovidos de qualquer propósito. Afinal, apesar dos termos chulos adotados, trata-se de argumentos esgrimidos por um presidente da República e manifestados em reunião com a mais alta cúpula do governo. É preciso olhar a floresta, não apenas a árvore, para dar a exata dimensão e o peso das palavras proferidas pelo mandatário do País naquele momento – e em que a força de suas expressões redundaram. Na verdade, a gravação é tão somente a última peça de um quebra-cabeças já conhecido em seu inteiro teor. Jamais pode ser esquecida e desprezada do contexto, por exemplo, a mensagem “Mais um motivo para a troca” enviada por Bolsonaro a Moro, depois de comunicar-lhe, a partir de uma notícia extraída de O Antagonista, de que “10 de 12 deputados” bolsonaristas haviam virado alvo da PF na investigação do STF sobre as supostas ameaças a ministros – o inquérito do fim do mundo que censurou Crusoé.

Antes mesmo de partir para uma nova tese de defesa, Bolsonaro já havia falado publicamente sobre seus problemas pessoais com a PF. Há mais de dez dias, ao conceder uma entrevista “quebra-queixo” na entrada do Palácio da Alvorada, reconheceu que acalentava o desejo de trocar o superintendente da PF no Rio, pois teriam tentado “colocar na conta” dele e de seus filhos o assassinato de Marielle Franco, mas a Polícia Federal não havia investigado o caso.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO presidente, em entrevista: em sua defesa, ele diz que não citou a Polícia Federal na reunião
É proverbial a preocupação de Bolsonaro com os filhos. Quando o presidente tomou posse, Flávio, recém-eleito senador pelo Rio, passara a ser investigado no escândalo do “rachid”, ocorrido na Alerj, no qual o filho 01 do presidente e outros parlamentares são suspeitos de participar de um esquema de recolhimento de parte dos salários de assessores. Um dos operadores, segundo a investigação, era o notório Fabrício Queiroz.

A PF não se debruçou sobre o caso. Recentemente, porém, conforme admitiu o ex-superintendente no Rio Carlos Henrique Oliveira em depoimento nesta quarta-feira, 13, apurou a prática de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica por Flávio na declaração de bens nas eleições de 2014, 2016 e 2018. A apuração, no entanto, foi encerrada com um pedido de arquivamento. Hoje, a PF atua em dois inquéritos sob a batuta do ministro do Supremo Alexandre de Moraes: o que investiga as supostas ameaças a ministros do STF e o que apura o patrocínio e organização das manifestações antidemocráticas apoiadas pelo presidente. Nos dois casos, os filhos do presidente podem estar implicados, em razão da relação quase umbilical com os principais pontas de lança da guerrilha digital travada nas redes sociais.

Conforme revelou Crusoé em sua última edição, Jair Bolsonaro também queria controlar a PF, em especial a do Rio, porque dizia estar debaixo de ataque do governador do Rio, Wilson Witzel, e acreditava que a polícia local, orientada pelo chefe do Executivo estadual e seu desafeto, mirava sua família e planejava ações de busca e até “plantação” de provas em endereços de seus parentes. Ele queria usar a PF para se proteger e proteger a família, com informações de inteligência, e, como contra-ataque, imaginava que também poderia obter informações sobre investigações que pudessem envolver o governador. Ou seja, pululam razões de cunhos político e pessoal para a investida de Bolsonaro contra a PF até então comandada por Sergio Moro – e é exatamente isso que os trechos da fala presidencial na reunião ministerial de 22 de abril evidenciam.

Além disso, a julgar pela inverossímil versão espalhada pelo Palácio do Planalto ao longo da semana, se a preocupação do presidente estivesse de fato associada à sua segurança pessoal, quem deveria estar fora do governo era o general Augusto Heleno, do GSI, não Sergio Moro. Depois da reunião ministerial, o então titular da Justiça foi recebido em audiência pelos ministros militares do Planalto – além de Heleno, o chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, e o general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo. No encontro, Moro manifestou toda a sua contrariedade com a tentativa de Bolsonaro se meter na Polícia Federal. Ao que os ministros pediram que ele se acalmasse e digerisse as mudanças determinadas por Bolsonaro – fato corroborado pelos depoimentos dos próprios generais à PF durante esta semana. Ora, se a preocupação do presidente era com os seus guarda-costas, cuja inteira responsabilidade seria de Heleno, do GSI, por que os pares de Moro teriam agido no sentido de colocar panos quentes e serenar os ânimos do então ministro da Justiça?

Por tudo isso, além de prova material e quase confissão da ingerência política de Bolsonaro na PF por interesses pessoais, a gravação da reunião ministerial do dia 22 de abril parece ser um divisor de águas nas múltiplas crises enfrentadas pelo presidente nas últimas semanas – além da política, a sanitária e a econômica. O vídeo sobre o encontro em questão deve ser tornado público em breve. Desta vez, sem as letras frias das transcrições, mas com a força irrefreável das imagens e palavras. Na quinta-feira, 15, a defesa de Sergio Moro reforçou o pedido para disponibilização do inteiro teor do material. Segundo o advogado Rodrigo Sanchez Rios, a transcrição parcial anexada pela AGU nos autos do inquérito no Supremo continha “omissão do contexto e de trechos relevantes para a adequada compreensão do que ocorreu”.

Para decidir sobre a divulgação integral ou não da filmagem, o decano do Supremo só aguardava o posicionamento da Procuradoria-Geral da República. O parecer de Augusto Aras chegou em seu gabinete no fim da noite desta quinta. O procurador defendeu a divulgação apenas das declarações do presidente relacionadas ao objeto do inquérito. Para Aras, a divulgação da íntegra do material “o converteria em arsenal de uso político, pré-eleitoral, de instabilidade pública e de proliferação de querelas e de pretexto para investigações genéricas sobre pessoas, falas, opiniões e modos de expressão totalmente diversas do objeto das investigações”.

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