MarioSabino

Quem mudou foi Bolsonaro

08.05.20

Não percamos o senso de realidade, apesar de estarmos trancafiados em casa, sem perspectiva de sair tão cedo e cada vez mais letárgicos: a esmagadora maioria dos eleitores que escolheram Jair Bolsonaro para presidente da República queria apenas descriminalizar a política — ou seja, tirá-la das páginas policiais, onde fora parar havia treze anos, com a eclosão do mensalão petista. Resumi em outubro de 2018, antes do segundo turno:

É o que espera a maior parte dos brasileiros que votarão em Bolsonaro. Eles não não são “bolsonaristas”. Somente olharam para os lados e não viram mais ninguém capaz de impedir um presidiário corrupto e lavador de dinheiro de assumir o poder. Não confiaram em outro nome capaz de represar a podridão geral e criar uma ponte para o presente. Não viram outro símbolo anti-establishment, que é coisa diferente de “Mito”. Se os cidadãos responsáveis ajudarem Bolsonaro a ‘’governar pelo exemplo’’, para usar uma expressão do candidato, talvez tenhamos nomes palatáveis em quem votar daqui a quatro anos. Ajudar não significa aprovar todas as ações do seu governo, concordar integralmente com as suas opiniões, achar graça na sua vulgaridade, chancelar os seus preconceitos ou ser complacente com a fauna radical, oportunista e folclórica que surgiu no vácuo do símbolo. Significa contribuir para alguns consensos em nome do bem geral. E vigiar. Como acontece com qualquer governante democrático, Bolsonaro precisa de oposição e de imprensa independente no seu cangote – ou no seu Twitter.

Pouco antes, em agosto de 2018, fiz uma comparação entre Lula, o candidato nem tão oculto assim da eleição presidencial que se avizinhava, e Bolsonaro. Mostrei que era o petista que representava uma ameaça à democracia:

Uma das razões de Lula ter sido elevado ao panteão da esquerda foi a sua falta de cultura, que expressaria a concreta sabedoria proletária, contra a alienação encobridora do capitalismo. Bolsonaro subiu ao altar da direita brasileira também por causa do seu anti-intelectualismo de militar adestrado nas regras imutáveis da balística – um tiro de canhão nos relativismos morais típicos do pensamento esquerdista. Lula e Bolsonaro são, assim, igualmente louvados pela sua ignorância.

É preciso admitir, no entanto, que há uma diferença fundamental entre os dois. Lula representa uma ameaça real à democracia; Bolsonaro, não, ao contrário do que propagam na imprensa. Pelo menos até o momento.

No poder, Lula e seus seguidores tentaram criar um Conselho Federal de Jornalismo, para amordaçar a imprensa. Quiseram expulsar o americano Larry Rohter do Brasil, porque o correspondente do jornal The New York Times fez uma reportagem sobre o alto consumo etílico do petista. Tiraram da editora Abril publicidade de estatais, por causa da cobertura da Veja dos escândalos petistas. Instituíram o mensalão, esquema para comprar votos da base aliada com dinheiro público. Forjaram um dossiê contra José Serra, pago com dinheiro da Odebrecht (o nosso dinheiro, quer dizer). Financiaram, com recursos públicos, blogs sujos para manchar a reputação de jornalistas críticos ao governo. Aparelharam a máquina federal de alto a baixo. Criaram um Conselho Nacional de Justiça para tentar controlar magistrados independentes. Cumpliciados com as maiores empreiteiras do país, dilapidaram a Petrobras, para enriquecer pessoalmente e promover campanhas políticas com montanhas de dinheiro roubado, um claro atentado ao âmago da democracia representativa. Aliaram-se ao venezuelano Hugo Chávez e ao cubano Fidel Castro, além de outros tiranetes latino-americanos, para minar liberdades fundamentais e tentar perpetuar-se no poder. Ao final, Dilma Rousseff — criatura de Lula — destruiu a economia, botou milhões de brasileiros na fila do desemprego e promoveu uma enorme fraude fiscal para maquiar as contas do governo, contrariando a lei e cometendo o crime de responsabilidade que a levou ao impeachment.

Bolsonaro não fez nada disso. É, até o momento, friso, apenas mais um político ignorante. A diferença é que o fato de ser de direita é um agravante na universidade e nos meios de comunicação colonizados pela esquerda. A sua defesa às vezes pitoresca do regime militar não significa automaticamente que queira virar ditador ou vá legalizar a tortura, como já deram a entender (e decerto a escolha do general Hamilton Mourão ajuda bastante os seus detratores). Quando diz que policial tem de matar bandidos e as pessoas têm o direito de autodefesa, ele expressa, Ipanema goste ou não, a opinião da maioria dos cidadãos, não de um gueto. Bolsonaro ataca a imprensa, mas nunca falou em “controle social da mídia”. A sua misoginia (Janaina Paschoal não o acha misógino), grosseria e comentários politicamente incorretos sobre negros são os mesmos das conversas de boteco de petistas, assim como as suas piadas sobre gays – Bolsonaro só mostra a imprudência de dizer bobagens abertamente. Ou talvez a esperteza. Encontrei-o uma vez e perguntei se não iria suavizar o seu discurso. Respondeu que não, porque era esse discurso que o havia trazido até os patamares de popularidade que ocupa. Como se viu na entrevista na GloboNews, e se verá em todos os debates, o candidato desnorteia os jornalistas porque não atenua os seus pontos de vista nem tenta esconder o seu despreparo. Usa o reconhecimento desse despreparo como ativo. Como outra prova da sua diferença positiva em relação aos concorrentes, subvertendo a lógica eleitoral. Os seus eleitores aplaudem porque ele parece mais genuíno do que os concorrentes. Não menos importante, é enfático ao afirmar ser contra o PT e defender integralmente a Lava Jato. Bolsonaro traduz em ondas tropicais o cansaço de uma parcela expressiva de eleitores decepcionada com o cinismo da esquerda e a desonestidade acima da média histórica dos políticos em geral.

Lula provou ser infinitamente mais perigoso para a democracia do que Bolsonaro – inclusive porque ainda conta com um partido forte e aliados de ocasião poderosos. Bolsonaro não tem quase ninguém do establishment do seu lado. Com o PT de volta à Presidência, o país entrará em curto-circuito institucional. Lula será beneficiado com indulto e, criminoso condenado, nomeará o ministro da Justiça, o diretor da PF, o PGR, ministros do STF e do STJ e desembargadores federais – além do presidente da Petrobras, empresa que está do lado dos acusadores em processos contra o chefão petista. Com Bolsonaro na Presidência, ele terá de fazer alianças de forma idêntica aos outros – e o risco de não conseguir tecê-las será baixo, tendo a crer, porque político nacional gosta de aderir a quem tem a caneta na mão. Obviamente terá de mostrar flexibilidade, como qualquer Onyx Lorenzoni é capaz de lhe dizer. A gritaria da esquerda será trilha sonora constante durante todo o seu mandato, a estridência de Bolsonaro idem, mas estamos acostumados ao barulho desde sempre.

Sob Bolsonaro, o Brasil continuará a ser um país de segunda categoria, com um ministro da Fazenda competente que conseguirá fazer um décimo do que promete. Se Paulo Guedes aguentar o tranco e o Planalto e o Congresso não atrapalharem além da conta, gastos públicos serão contidos e algumas estatais, fechadas ou vendidas. Quem sabe haverá uma simplificação fiscal. Nada muito diferente do que ocorrerá no caso de Geraldo Alckmin conquistar a cadeira presidencial. Poderemos entrar, assim, num modesto círculo virtuoso, porque o mercado se contenta com pouco, visto que não nutre maiores esperanças em relação ao Brasil, que já foi devidamente precificado, desde que mantido em condições mínimas de temperatura e pressão. Sob Lula e o seu poste (ou Ciro Gomes), mergulharemos no caos, com a economia entregue desta vez a um maluco desenvolvimentista que revogaria as poucas reformas feitas sob Temer.

Peço desculpa pela autorreferência, mas é para lembrar os leitores que nem eu nem esta revista — ou O Antagonista — mudamos. Ao contrário de certa imprensa, reconhecemos imediatamente a legitimidade de Bolsonaro como candidato e tentamos explicar os motivos compreensíveis que levaram 57 milhões de brasileiros a votar num político profissional que se vendia como novidade. Demos um crédito, na esperança que tudo desse certo para o país. Dizer desde o início que o governo Bolsonaro não daria certo, simplesmente, seria futurologia ou torcida, nunca jornalismo. Nós não mudamos, quem mudou foi Bolsonaro — ou melhor, tirou a máscara de candidato e voltou a ser o mesmo de antes da candidatura. Ele nunca deixou de ser tosco, mas agora tem o agravante de ter rasgado os compromissos que assumiu durante a campanha. O presidente eleito para tirar a política das páginas policiais está fazendo o seu contrário.

Depois de explodir todas as pontes de tráfego decente com o Congresso — com a ajuda estimável do gabinete do ódio especializado em fake news, equivalente aos blogs sujos do petismo — e inviabilizar um diálogo político minimamente saudável com deputados e senadores, o presidente sem partido estabeleceu uma pinguela com o Centrão, para contornar as dificuldades que ele mesmo criou e, no limite, um processo de impeachment. Sob os aplausos dos seus cúmplices no parlamento (petistas incluídos), Bolsonaro vem chancelando a destruição da Lava Jato e atingiu o máximo da infâmia ao forçar a demissão de Sergio Moro do Ministério da Justiça, a fim de mudar o diretor-geral da Polícia Federal e, assim, tentar evitar que investigações conduzidas no Rio de Janeiro possam alcançar os seus filhos ou até ele próprio. A demissão de Moro teve ainda outro motivo: o medo de que o ex-ministro da Justiça lhe fizesse sombra em 2022. Bolsonaro, ao contrário do que dizia na campanha, quer ser reeleito.

Com a cabeça na reeleição, o presidente alimenta a guerra entre Rogério Marinho, que passou a nutrir a tara desenvolvimentista de estourar os cofres públicos com um novo PAC, sob a batuta de empresários da construção civil, e Paulo Guedes, que só não sai do cargo, aparentemente, por senso de responsabilidade com o país. Vamos ver até que ângulo a espinha dele é dobrável. Bolsonaro, naquele trololó ambíguo, só faz torpedear com o seu Quasimodo na Câmara os planos do Ministério da Economia para conter o gasto do governo. Afinal de contas, presidente que gasta menos tem chance menor de reeleger-se, na lógica binária da velha política brasileira. Em meio à urgência sanitária mundial, ele ainda demonstra o mais sociopático desprezo pela perda de milhares de vidas dos seus concidadãos— as mesmas que afirmava querer salvar da sanha dos bandidos que agem impunemente no país. O candidato que pregava a transparência recusa-se hoje a mostrar o resultado do seu teste para Covid-19, depois de estimular aglomerações ao seu redor — o que congela a dúvida se deu mesmo negativo e ele não está evitando ser processado por crime de responsabilidade. Sim, porque enquanto se entrega ao Centrão, Bolsonaro estimula bobocas a sair às ruas para pedir o fechamento do Congresso e também do STF, cujos ministros mais visados pela opinião pública (e pelos bobocas) tiveram amigos nomeados para cargos estratégicos no governo federal — e que festejaram a demissão de Moro, a quem foi dado o bilhete azul ao invés da prometida carta branca.

Para além do uso de milicianos digitais à maneira petista, só que com amplitude jamais vista, a briga com a imprensa agora estende-se a recomendar a empresas privadas que parem de anunciar em veículos de comunicação considerados inimigos, da mesma forma que fez Lula. Mas que fique claro: não fomos nós, da Crusoé e de O Antagonista, que mudamos. Continuamos a defender a democracia representativa, o capitalismo, o enxugamento do Estado, a autonomia dos órgãos de controle e da Justiça, as medidas duras contra a criminalidade violenta e o legado da Lava Jato na luta anticorrupção, assim como a maior parte dos milhões dos eleitores que votaram em Bolsonaro. A única diferença é que, tal qual você, estamos trancafiados em casa, sem perspectiva de sair tão cedo. Porque, para completar o quadro, inexiste um plano nacional unificado para enfrentar a pandemia, coordenado com serenidade por um presidente da República que não se veja perseguido politicamente por um vírus.

Quem abandonou a ideia de “governar pelo exemplo” foi o inquilino do Palácio do Planalto.

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