Adriano Machado/Crusoé

Por que ele quer o Rio

Crusoé apurou as razões pelas quais Jair Bolsonaro insistia para ter um 'contato direto' na unidade da Polícia Federal no Rio. Uma delas, em especial, torna ainda mais escandalosa a tentativa do presidente de interferir na corporação: ele queria que a PF avançasse sobre seus adversários políticos, entre eles Wilson Witzel
08.05.20

“Moro, você tem 27 superintendências, eu quero apenas uma, a do Rio de Janeiro.” O apelo de Jair Bolsonaro a Sergio Moro, registrado em uma mensagem de WhatsApp, não poderia ser mais autoexplicativo. O interesse do presidente em ter alguém de sua confiança no comando da superintendência da Polícia Federal no Rio, seu berço político, desaguou na saída de Moro do governo, há duas semanas.

As tentativas de Bolsonaro de interferir na corporação há tempos envenenavam o ambiente entre ele, Moro e o agora ex-diretor-geral Maurício Valeixo, alçado ao posto pelo ex-juiz da Lava Jato logo no início do governo. Em agosto do ano passado, Bolsonaro emitiu o primeiro sinal público de sua obsessão pelo assunto. “Vou mudar o superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro. Motivos? Gestão e produtividade”, anunciou o presidente.

A declaração causou indignação e surpresa geral. Dentro da polícia, mas também fora de lá. Superintendentes normalmente são escolhidos pelo diretor da corporação. Um presidente da República se imiscuir nessa seara – e ainda publicamente e sem aviso prévio – é algo incomum. O movimento logo foi enxergado como uma ingerência estranha.

Àquela altura, Bolsonaro já andava incomodado com a autonomia de Sergio Moro. Entendia que ele, escudado em altos índices de aprovação popular, não lhe dava satisfações e corria em raia própria. O então ministro reagiu nos bastidores. Deixou claro ao presidente que a interferência era inaceitável. Ele tinha acabado de se dar conta de que a “carta branca” que lhe fora prometida por Bolsonaro quando do convite para integrar o ministério não era tão branca.

O presidente dobrou a aposta. “Se eu não posso trocar o superintendente, eu vou trocar o diretor-geral”, ameaçou ele diante das câmeras, à porta do Alvorada. “Quem manda sou eu”, chegou a dizer.

A saída para o impasse, ali, foi intermediária. A Polícia Federal trocou o diretor, mas fez questão de anunciar publicamente que o substituto havia sido escolhido por Valeixo, e não pelo presidente da República. Mais: em um ato ousado, distribuiu nota desmentindo Bolsonaro ao afirmar que a troca já estava planejada e não guardava qualquer relação com desempenho.

O então superintendente, Ricardo Saadi, um dos delegados mais estrelados dos quadros da polícia, foi transferido para um cargo da burocracia do Ministério da Justiça, em Brasília. O escolhido para o lugar dele foi Carlos Henrique Oliveira, que fez carreira no Rio, mas tinha acabado de ser transferido para o Recife.

Era só uma trégua. Bolsonaro seguiria descontente com a Polícia Federal e com Moro ao longo dos meses seguintes. E manteria firme a pressão por mudanças, inclusive na cúpula, em Brasília. Ele não engolia Valeixo e repetia que gostaria de ter alguém da sua estrita confiança como chefe no Rio. Valeixo, internamente, se mostrava perto do limite. Sentia-se sob pressão. E, com alguma frequência, se queixava a pessoas próximas da obsessão presidencial pelo Rio de Janeiro. Só não dizia claramente do que se tratava.

Eliane Carvalho/Governo do Estado do Rio de JaneiroEliane Carvalho/Governo do Estado do Rio de JaneiroWitzel: o ex-aliado virou inimigo figadal do presidente
A crise surda perdurou até ser finalmente destampada pela confusão que culminou com o pedido de demissão de Moro. Nos últimos meses, e em especial nas últimas semanas, Bolsonaro aumentou a carga. E exigiu, de novo, trocas na Polícia Federal –no comando nacional e, particularmente, no Rio. No pronunciamento em que confirmou oficialmente sua saída do governo, o ex-juiz denunciou a pressão.

“O presidente me disse mais de uma vez que queria ter uma pessoa da confiança pessoal dele, que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, relatórios de inteligência. Seja diretor, seja superintendente. E não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm que ser preservadas”, disse Moro.

Ao responder a seu ex-ministro, Bolsonaro acabou por confirmar seu interesse em ter um canal mais direto no comando da polícia. “Falei para ele (Moro): ‘quero um delegado, que pode não ser o seu, pode não ser o meu, mas que eu sinta, além da competência óbvia, se bem que isso é uma coisa comum entre os delegados da Polícia Federal, que eu possa interagir com ele’. Por que não?”, disse o presidente.

Aberto o inquérito para investigar as suspeitas surgidas a partir do seu explosivo discurso de demissão, Moro prestou depoimento no último sábado e realçou mais ainda o foco de preocupação de Bolsonaro: o Rio de Janeiro.

“Durante o período que esteve à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública, houve solicitações do presidente da República para substituição do superintendente do Rio de Janeiro, com a indicação de um nome por ele, e depois para substituição do diretor da Polícia Federal, e, novamente, do superintendente da Polícia Federal no estado do Rio de Janeiro, que teria substituído o anterior, novamente com indicação de nomes pelo presidente”, afirmou Moro, diante de dois delegados e três procuradores da República.

Nas vezes em que foi indagado sobre as razões da pressão, Moro repetiu que a pergunta deveria ser dirigida diretamente ao presidente. “Caberia a ele esclarecer os motivos das sucessivas trocas pretendidas na SR/RJ (a Superintendência Regional da PF no Rio), da troca efetuada do DG (diretor-geral) da Polícia Federal bem como, que caberia a ele esclarecer que tipo de informação ou relatório de inteligência da PF pretendia obter mediante interação pessoal com o DG ou SR/RJ, além de esclarecer que tipo de conteúdo pretendia nesses relatórios de inteligência”, registra o termo de depoimento.

Ficou ainda mais explícito, desde então, o ponto nevrálgico da crise. E sobreveio a pergunta de 1 milhão de dólares: afinal, o que tanto Bolsonaro quer na Polícia Federal do Rio? Indagado por jornalistas nas horas seguintes à publicação do depoimento de Moro, o presidente acusou o ex-ministro de mentir, evitou responder objetivamente sobre a pressão, mas justificou assim o interesse pela superintendência fluminense: “O Rio é o meu estado”.

Nos últimos dias, Crusoé procurou entender as razões pelas quais o presidente insistia tanto em ter a Polícia Federal, e em especial a unidade do Rio, mais perto de sua linha de comando. A resposta, contida de alguma forma nas entrelinhas do discurso de despedida de Moro e ainda mais nos interstícios do depoimento que ele prestou no sábado, não aponta para inquéritos formais em curso na superintendência: Bolsonaro queria da polícia informações de inteligência para usar em proveito próprio no jogo político, seja para se defender, seja para atacar adversários.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéValeixo cumprimenta Moro: a dupla se opunha às vontades de Bolsonaro
O presidente estava interessado em uma parcela do trabalho da Polícia Federal que precede a abertura de inquéritos. Como as suas congêneres espalhadas pelo mundo, a PF tem hoje um competente serviço de inteligência policial que opera reservadamente, com agentes infiltrados, informantes e sofisticadas técnicas de investigação, coletando informações que podem virar apurações formais ou são simplesmente utilizadas para consumo interno, como substrato para as decisões da cadeia de comando da corporação.

Quem investigar, o que investigar, por que investigar, dados sensíveis sobre o submundo do crime, sobre as bandas podres da própria polícia, sobre as conexões do crime com o mundo do poder. Tem tudo isso. As informações colhidas, devidamente estruturadas em relatórios sigilosos, são reunidas em um sistema eletrônico próprio, acessado por poucos – ou pouquíssimos, a depender do nível do segredo. É nesse serviço oculto, aliás, que está uma das principais fontes do poder que a Polícia Federal angariou nos últimos tempos. Tanto é assim que, dos delegados que se sentaram na cadeira de diretor-geral desde o começo da década passada, praticamente todos tiveram postos chaves na área de inteligência.

De corrupção a crimes financeiros, de narcotráfico a terrorismo, a poderosa Diretoria de Inteligência Policial, baseada em Brasília, e os NIPs, acrônimo que designa os núcleos de inteligência policial distribuídos por todas as unidades da federação, têm atuação abrangente. No caso do Rio, um estado onde é tênue o limite entre o poder oficial e o poder paralelo do crime, não falta matéria-prima para o trabalho.

A uma parte desse trabalho o presidente da República até tem direito a acesso. É aquela que envolve informações estratégicas genéricas e que, teoricamente, pode ser útil à tomada de decisões do governo. Por exemplo, o cenário geral do crescimento das facções, o fluxo de cocaína entre cidades ou as ameaças à segurança de grandes eventos.

Mas há uma outra parte, a que envolve diretamente pessoas investigadas e dados de investigações específicas, que por lei não pode ser compartilhada com autoridades estranhas à cadeia de custódia da informação criminal – no máximo, poderiam tramitar dentro de um processo, entre policiais, procuradores do Ministério Público e juízes. Autoridades políticas, como o presidente da República, ainda que estejam acima da polícia na hierarquia, não podem e não devem ter acesso. Era justamente essas informações que o presidente da República queria, insistentemente, obter.

É aí que está o detalhe mais escandaloso da crise que opõe Jair Bolsonaro a Sergio Moro: nos últimos tempos, o presidente queria informações sobre seus principais adversários políticos no Rio. Entre eles, o governador Wilson Witzel. Moro, então ministro, e Maurício Valeixo, então diretor-geral da Polícia Federal, se opunham ao compartilhamento desses dados. Por isso, caíram em desgraça.

O Palácio do Planalto chegou a usar a Agência Brasileira de Inteligência, o serviço secreto do governo, para tentar obter as informações da Polícia Federal por intermédio dos canais de cooperação entre as duas corporações. A Abin é chefiada por Alexandre Ramagem, o delegado que se aproximou da família presidencial depois de ser destacado para fazer a segurança de Bolsonaro durante a campanha eleitoral. Ramagem era o nome preferido do presidente para a direção da PF. Ele chegou a ser nomeado para a vaga aberta com a demissão de Valeixo, mas sua posse foi barrada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

Até o início do segundo semestre do ano passado, quando eclodiu a primeira crise entre Bolsonaro e a Polícia Federal, com Sergio Moro já na linha de tiro, os interesses do presidente eram, digamos, menos específicos, embora já deixassem explícitos o conflito de interesses e a ilegalidade da interferência. Havia, sob a égide da superintendência fluminense, alguns temas que o preocupavam. Entre eles, investigações envolvendo aliados e um inquérito sigiloso com menção ao notório Fabrício Queiroz, seu ex-colega de farda que virou assessor de Flávio Bolsonaro.

ReproduçãoReproduçãoA sede da Polícia Federal no Rio: origem da maior crise no governo
Queiroz, àquela altura, já estava no centro da investigação do Ministério Público estadual do Rio que apura se ele era o responsável por cobrar a devolução de parte do salário dos funcionários do gabinete de Flávio nos tempos em que o filho 01 do presidente, hoje senador, era deputado estadual. O próprio Flávio é investigado no caso sob suspeita de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Jair Bolsonaro entendia que a PF do Rio vinha sendo usada para perseguir sua família. E exigia providências.

Entre o final de outubro e o início de novembro, a pressão se multiplicou após o presidente saber que a Polícia Civil do Rio, subordinada a Witzel, tinha tomado o depoimento de um porteiro de seu condomínio, na Barra da Tijuca, que mencionava seu nome na investigação sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco – depois, restou demonstrado que o porteiro mentiu.

Bolsonaro passou a repetir em conversas mais reservadas, e em outras nem tanto, que estava em guerra com Witzel. Para ele, o governador queria destruí-lo politicamente e vinha usando a estrutura policial do estado para isso. Dizendo ter informações de que a Polícia Civil tinha planos de realizar buscas e “plantar provas” em endereços de seus filhos, ele passou a exigir que a Polícia Federal entrasse em campo para defendê-lo. Queria, por exemplo, que fosse aberta uma investigação para apurar as circunstâncias em que o depoimento do porteiro foi obtido. Mas isso não bastava.

Dali até a queda de Valeixo e o pedido de demissão de Sergio Moro, a pressão se manteve nos níveis mais elevados. Em fevereiro deste ano, quando o miliciano Adriano da Nóbrega foi morto em uma operação conjunta das polícias do Rio, estado comandado pelo rival Witzel, e da Bahia, governada pelo petista Rui Costa, os ânimos se acirraram ainda mais. Bolsonaro viu na ação uma tentativa de atingi-lo – “Capitão Adriano”, como era conhecido, tinha conexões com Fabrício Queiroz e o antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia do Rio. Mais pressão.

O presidente queria a PF atuando não só para identificar e neutralizar os supostos movimentos do governador fluminense como passou a cobrar também informações reservadas sobre investigações em curso com potencial para minar Wilson Witzel politicamente – ele soube que há apurações em andamento capazes de criar embaraços para o governador. As investidas se tornariam cada vez mais intensas.

No discurso que fez horas após Moro se demitir, Bolsonaro citou o caso do porteiro entre as razões de seu descontentamento com o ex-ministro e com a Polícia Federal. “É exigir da Polícia Federal muito, via seu ministro, para que esse porteiro fosse investigado?”, disse. Na última terça-feira, 5, ele retomou o assunto em uma entrevista. “Eu fui acusado de tentar matar a Marielle. Quer algo mais grave do que isso? Não interessa quem seja, mas o presidente da República acusado de um assassinato. A Polícia Federal tinha que investigar, por que não investigou em profundidade?”

Na reunião ministerial do último 22, o presidente cobrou de Moro mudanças na Polícia Federal. Especificamente, as substituições de Maurício Valeixo e do superintendente no Rio. Diante de todo o primeiro escalão do governo, mencionou suas tentativas de obter relatórios de inteligência e outras informações da PF. A certa altura, tratou da tal ofensiva de Witzel – algo que, segundo seus auxiliares mais próximos, ele tacha como “arapongagem”.

Sergio Moro listou a gravação do encontro entre as provas que podem corroborar a denúncia que fez ao anunciar sua saída do governo. Além de todo o histórico recente de mensagens trocadas com Bolsonaro, o ex-ministro deixou outra pista que pode ser útil: sugeriu que os investigadores peçam à Abin e à inteligência da Polícia Federal os protocolos de encaminhamento de relatórios ao Planalto que deixarão claro quais informações foram remetidas. Ele não diz, mas é uma forma de se descobrir o tipo das requisições não atendidas. Exatamente aquelas que envolviam informações que o presidente queria, mas não poderia ter.

Com reportagem de Igor Gadelha

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