RuyGoiaba

O ranking da surra de gato morto

01.05.20

Descobri que uma boa diversão para estes dias de isolamento social é fazer um ranking de pessoas às quais você gostaria de aplicar uma surra de gato morto até o gato miar. Aliás, estamos numa situação ideal para esse tipo de passatempo, porque essa surra será necessariamente imaginária: você não vai se arriscar a sair de casa para bater em alguém — mesmo de máscara e luvas — e pegar o coronavírus, certo? Fraternidade sim (de longe, sem abraços), violência não: esta coluna só incentiva os sentimentos fofinhos. Sigamos.

Na verdade, não chega a ser um ranking: são dois grandes grupos de pessoas cujo comportamento durante a pandemia está “me levando aos infinitos”, como diria minha avó portuguesa (assim mesmo, com “infinitos” no plural). Deixo claro que a lista exclui o celerado do Palácio do Planalto e sua família, porque eles são hors-concours e porque, infelizmente, a surra de gato morto não é uma punição prevista na Constituição: nesse caso, existem outras melhores. (Sim, Congresso e STF, é com vocês mesmos que nós estamos falando.)

– Celebridades

Talvez isso não seja tão forte num país às voltas com as declarações do Sr. E Daí?, mas lá nos EUA o pessoal está adorando ver Madonna divagando, numa banheira cheia de pétalas de rosas, sobre como o coronavírus iguala ricos e pobres. Ou Jennifer Lopez com o noivo e o filho, no jardim de sua mansão com piscina, dizendo “não podemos sair para restaurantes, mas o serviço e a diversão aqui são bem bons”. Como se trata de celebridades CONSCIENTES, engajadas e tal, muitas ainda mandam um “estamos todos juntos nessa”, muito reconfortante para quem tem de passar a quarentena bem juntinho com a família num cubículo ou é obrigado a sair à rua porque seu salário depende disso.

A porção jacobina da internet, ao que parece, não acredita muito nesse show de boas intenções e está respondendo às Marias Antonietas do Instagram com a hashtag #guilhotina2020. Mas talvez a melhor resposta tenha sido a da humorista australiana Greta Lee Jackson, que gravou um vídeo em que agradece pelo “humanismo” dessas celebridades. O vídeo inclui depoimentos como “vejo muitas mortes todo dia, e a ameaça constante de ser infectado e infectar minha família é aterrorizante. A única coisa que me dá forças para encarar meu trabalho diário é ver Ellen [DeGeneres, a apresentadora] falando de sua mansão” (corta para Ellen, com belas plantas ao fundo, dizendo “é como estar na cadeia!”).

Termina com a humorista dizendo “obrigado! Vocês [celebridades] são os verdadeiros heróis”. Mereceria o Oscar — que jamais, jamais ganhará.

– Filósofos

Mas ainda mais irritante que a ostentação das celebridades é a overdose de gente dizendo que a pandemia vai nos obrigar a nos REPENSAR ENQUANTO SERES HUMANOS. O homem vai se dar conta de que está no mesmo barco de seus semelhantes e se arrepender de todo o mal feito, seremos mais compassivos e menos egoístas, a moda (a culinária, a economia, a astrologia –preencha com o que quiser) será mais inclusiva, o capitalismo se provará insustentável: em suma, vamos todos cantar “Imagine” de mãos dadas quando enfim pudermos dar as mãos uns aos outros sem usar álcool em gel.

Há também quem diga que o cotidiano “nunca mais será o mesmo” – nem é gente que usa collant e capinha e sai por aí vestida de Capitão Óbvio, mas deveria. Ou sujeitos como o historiador best-seller Yuval Noah Harari, que pontificou: “O maior perigo não é o vírus. São nossos próprios demônios interiores, o ódio, a ganância e a ignorância”. NÃO, seu cretino solene: o maior perigo é, sim, esse vírus que já matou centenas de milhares no mundo todo e para o qual, apesar dos esforços dos cientistas, ainda não temos vacina. E, como disse um amigo, ódio, ganância, mau hálito e Fanta Uva continuarão existindo.

Os seres humanos que sobreviverem depois disso tudo serão o mesmo barro que sempre foram. Mas é verdade que finalmente poderemos abraçar alguns deles – e dar surras de gato morto reais em alguns outros. Não vejo a hora.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Enquanto o ministro da Saúde, Nelson Teich, confessa navegar às cegas no combate à pandemia – para deixar todo mundo bem tranquilo — e a pasta suspende as entrevistas coletivas técnicas da gestão anterior, as redes sociais do ministério resolveram dar uma de Rita Lobo e publicar receitas “práticas e saborosas” de pão caseiro. Até imagino que a intenção tenha sido dar uma pausa no meio de um tsunami de notícias ruins, mas só faltou mandar a receitinha de brioches para o figurino de Maria Antonieta ficar completo.

“Transforme a pandemia em pão-demia com receitinha especial de brioche!”

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