Nasce um candidato
Como juiz federal em Curitiba, Sergio Moro colecionou uma extensa lista de inimigos na política. As prisões e condenações decretadas pelo ex-magistrado na Lava Jato minaram o corroído projeto de poder da esquerda comandada pelo PT e encurralaram lideranças de centro que se alimentavam do esquema petista ou o reproduziam em seus feudos. Na última semana, Moro engordou a trincheira oposta com a beligerante tropa da extrema-direita, ao romper com o presidente Jair Bolsonaro, acusando-o de interferência indevida na Polícia Federal. Sua saída precoce e conturbada do Ministério da Justiça e Segurança Pública foi celebrada como vitória pelos adversários, mas, ironicamente, acabou por gerar um outro temor na classe política. Sem cargo e sem toga, mas com um invejável capital político na bagagem, Moro está livre para o voo solo desejado por muitos de seus admiradores e desponta como o candidato a ser batido na próxima eleição presidencial.
O ex-juiz da Lava Jato não admite nem em conversas reservadas que pretenda se candidatar ao Planalto, mas o movimento em seu entorno mais próximo é todo nesse sentido. De familiares a amigos, a pressão é grande para que ele comece, desde já, a construir uma estratégia que lhe permita transformar a estupenda aprovação popular em um projeto para chegar à Presidência da República.
No Paraná, desde o anúncio do desembarque do governo, um grupo de pessoas próximas ao ex-ministro já articula o lançamento de um movimento político para defender a biografia dele, rebater os ataques virtuais desferidos agora pelos dois polos ideológicos e arregimentar apoiadores em todo o país com o objetivo de pavimentar uma possível candidatura. A ideia dos organizadores é fortalecer a imagem de Moro como uma liderança nacional capaz de aglutinar forças em diferentes setores da sociedade e descolar dele o rótulo de carrasco da “República de Curitiba”, atribuído por seus algozes. Além da já conhecida atuação como juiz da Lava Jato, as conquistas no Ministério da Justiça, como a redução histórica dos principais índices de criminalidade, serão exibidas como bandeiras de gestão, da mesma forma que as derrotas, como a inclusão do juiz de garantias no pacote anticrime. Todas serão exploradas como exemplo de firme coerência que o distingue dos que hoje ocupam o poder.
Desde que deixou o governo Bolsonaro, há uma semana, Moro tem dito que vai aproveitar a quarentena de seis meses imposta pela Comissão de Ética Pública para descansar com a família na capital paranaense e refletir sobre seu destino político e profissional. Nesse período, ele continuará recebendo o salário de ministro — 33,7 mil reais brutos — como remuneração compensatória. Também seguirá sendo escoltado pela PF. O ex-juiz já recebeu convites para ser secretário em quatro estados, entre eles Paraná e Rio de Janeiro, mas não deve aceitar nenhum deles porque não quer servir de troféu a governadores nem correr o risco de novos dissabores no curto prazo. Duas editoras já propuseram o lançamento de livros sobre sua biografia e suas iniciativas de combate à corrupção. Há propostas de palestras que estão congeladas por causa de outra quarentena, a do coronavírus, e universidades americanas e brasileiras, como a UniCEUB, de Brasília, o convidaram para dar aulas, atividade permitida no período de restrição profissional e que ele está bem propenso a aceitar.
Paralelamente, Moro vai se dedicar ao embate que terá com Bolsonaro no âmbito do inquérito aberto pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, para apurar as acusações públicas feitas pelo ex-ministro contra o presidente, por interferência política na PF. Ao que tudo indica, o duelo não será fácil. Como Crusoé mostrou na semana passada, Aras deixou brechas para enquadrar Moro por denunciação caluniosa e crime contra a honra na mesma investigação caso o ex-juiz não comprove suas afirmações. Em condições normais de temperatura e pressão, suspeitas contra um denunciante são apuradas em um segundo momento, em novo inquérito aberto após o arquivamento do primeiro por falta de provas. A medida de Aras foi vista como “oportunista” por aliados de Moro. Para eles, o PGR quer retribuir a indicação feita pelo presidente no ano passado e se vingar pela falta de apoio do ex-ministro da Justiça ao seu nome.
Em outra frente, também no Supremo, Moro terá de defender sua biografia no julgamento do pedido de habeas corpus em que a defesa do ex-presidente Lula pede a anulação da condenação do petista no caso do tríplex do Guarujá. Os advogados querem que a corte declare a suspeição do ex-juiz. O argumento central é o de que ele condenou Lula para tirá-lo da eleição presidencial e beneficiar Bolsonaro. Relator do caso, o ministro Gilmar Mendes disse que irá pautar o pedido de Lula para votação na Segunda Turma assim que as sessões do STF voltarem à normalidade, após o fim da pandemia. Gilmar é ex-adversus de Moro no Judiciário e usou à exaustão as mensagens roubadas da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba para tentar desqualificar o ex-juiz. Ao lado do presidente Dias Toffoli, também explorou habilmente um tema muito caro a Bolsonaro, a investigação envolvendo o primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, para esvaziar o poder de Moro com a retirada do Coaf da alçada do então ministro da Justiça. Ao mesmo tempo, conseguiu travar uma extensa apuração da Receita Federal que mirava, entre outras coisas, movimentações financeiras de sua mulher, Guiomar Feitosa, e da mulher de Toffoli, Roberta Rangel.
Em setembro do ano passado, Crusoé expôs os sinais de um acordão feito entre o Planalto, o Supremo e o Congresso para enfraquecer Moro e minar a política de combate à corrupção conforme os interesses particulares dos líderes dos três poderes. O golpe cabal foi a sanção de Bolsonaro do juiz de garantias, incluído pelo Parlamento no pacote anticrime de Moro, à revelia dele e com apoio da ala “garantista” do STF. Na última quarta-feira, 29, o acordão ganhou uma simbólica fotografia durante um concorrido evento palaciano. Como ambos descumpriram as recomendações sanitárias e não usaram máscaras de proteção, foi possível notar nas expressões de Toffoli e Gilmar o grau de satisfação com a posse de André Mendonça no Ministério da Justiça e Segurança Pública. Chamado de “terrivelmente evangélico” por Bolsonaro, o substituto de Moro foi efusivamente elogiado pela dupla do STF e retribuiu a gentileza, especialmente a de Toffoli, com quem trabalhou na Advocacia-Geral da União no governo Lula. Mendonça afirmou que vai dar sequência ao trabalho técnico da pasta, mas também prometeu prestar contas sobre as ações do ministério, incluindo a PF, ao presidente da República.
Além dos rivais já conhecidos, Moro sabe que o seu recente rompimento com Bolsonaro frustrou a estratégia de políticos que sonham com o Planalto e estavam aproveitando a pandemia do novo coronavírus para se contraporem ao presidente, após tê-lo apoiado na eleição. É o caso dos governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio, Wilson Witzel. Tão logo o ex-juiz pediu demissão na última sexta, Witzel foi às redes sociais para dizer que lamentava a saída do ministro e oferecer um cargo no seu governo ao seu ex-colega de magistratura. Já o tucano, que no passado já havia deixado as portas do governo paulista abertas para Moro, prestou solidariedade ao ex-juiz da Lava Jato e usou o episódio da ingerência na PF para atacar Bolsonaro. Nos bastidores, porém, aliados de Doria não escondem a preocupação com uma possível candidatura de Sergio Moro em 2022. Entusiastas da ideia, como o senador Álvaro Dias, do Podemos, já ofereceram legenda ao ex-ministro. Até lá, a sombra dele continuará incomodando a classe política, que terá de avaliar sua tática de guerra para não torná-lo um nome imbatível nas urnas. “É como fazer pão, quanto mais bate, mais cresce”, resume um observador que trabalhou com Moro no auge dos ataques à Lava Jato.
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