O auge do conflito
A já abalada relação de Sergio Moro com Jair Bolsonaro nunca tinha chegado ao nível de estresse registrado nesta quinta-feira, 23. Logo pela manhã, o ex-juiz da Lava Jato foi ao Palácio do Planalto para uma audiência com o presidente e, lá, ouviu o que não gostaria de ouvir: Bolsonaro comunicou que decidira trocar o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, amigo pessoal e homem da estrita confiança de Moro desde os primórdios da força-tarefa de Curitiba que pôs na cadeia os artífices do petrolão.
Há tempos o presidente demonstrava insatisfação com Valeixo. E há tempos Moro agia como um zagueiro para tentar impedir a troca. Até então, ele vinha ganhando as divididas. O diretor-geral da PF, órgão situado debaixo da estrutura comandada por Moro, caiu em desgraça com Bolsonaro porque deixou correr soltas investigações incômodas para a família presidencial, especialmente no Rio de Janeiro, a terra dos Bolsonaro. O ambiente ficou ainda mais degradado em razão da própria relação do presidente com Sergio Moro: assim como via em Luiz Henrique Mandetta um ministro que corria em raia própria, dissociada do governo, Bolsonaro enxerga em Moro um subordinado que não liga muito para o que pensa e o que quer o chefe. Por isso, há tempos vem ensaiando um movimento para mostrar quem manda.
Em mais uma das já tradicionais entrevistas à porta do Palácio da Alvorada, ele disse logo após a demissão de Mandetta que outros ministros sentiriam brevemente o peso de sua caneta. Moro sabia que era o destinatário do recado. Nas últimas semanas, havia farejado que o presidente voltaria à carga no esforço para demitir Valeixo e, assim, testar seu grau de subordinação. Nos episódios anteriores, a vontade do ministro prevaleceu. Foi assim, por exemplo, quando Bolsonaro ordenou a demissão do chefe da PF no Rio de Janeiro – uma medida mal digerida na corporação, justamente pela leitura de que se tratava de uma interferência indevida do presidente na hierarquia de um órgão que deve ser de estado, e não de governo. Moro e Valeixo reagiram. Deixaram clara a insatisfação. O presidente tornou público que demitiria também o diretor-geral. Por fim, vieram os panos quentes.
Mais adiante, Bolsonaro deixou correr solta a articulação de aliados para cindir o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Desta feita, a caneta do próprio Moro estava em xeque. Defendida publicamente por amigos do peito do presidente, como o ex-deputado Alberto Fraga, a medida embutia mais uma vez a intenção de mexer na PF. Com a separação, a corporação passaria ao organograma do Ministério da Segurança. Moro perderia poder. E perderia a joia de sua coroa – a PF, afinal, é um dos pilares da Lava Jato e parte integrante da estratégia de combate à corrupção que o fez aceitar o convite para deixar a toga e virar ministro. O clima pesou novamente. Moro deixou claro ao presidente seu descontentamento com o movimento que tinha o próprio Bolsonaro como patrocinador. Temendo a reação do ministro, o mais popular entre todos do governo, o presidente recuou.
Estava dada a oportunidade para mais um “teste da caneta”: depois de Mandetta, o presidente colocaria o ministro da Justiça e Segurança na berlinda. A crise do coronavírus ajudou a aprofundar o descontentamento do presidente com o ex-juiz. Bolsonaro reclamou, repetidas vezes, da postura de Moro: dizia que ele, como chefe da pasta da Justiça, deveria estar mais empenhado em ajudar a colocar de pé, do ponto de vista jurídico, a sua estratégia de enfrentamento à pandemia. Mas o ministro parecia cada vez mais alinhado à postura defendida por Mandetta, em favor do isolamento social. A irritação aumentou ainda mais quando, no auge da briga do presidente com o então chefe da Saúde, a mulher de Moro, a advogada Rosângela Wolff, publicou em uma rede social uma indicação pública do lado em que estava a família: “In Mandetta we trust” (em Mandetta nós confiamos, em tradução livre do inglês).
Voltou então a ganhar corpo, na cabeça e nas conversas do presidente, a leitura de que Sergio Moro estaria mais preocupado com seus projetos pessoais do que com o governo como um todo. Também voltou à cena um fantasma que assombra Bolsonaro há tempos: ele acredita que Moro não compartilha de suas ideias e usa a posição no ministério como trampolim para tentar se eleger presidente em 2022. A alta aprovação popular do ministro, bem superior à do chefe, é outro fator de desgaste.
Da parte do ministro também há razões de sobra para se queixar — e para desconfiar — de Jair Bolsonaro. E não é de hoje. Em menos de um ano e meio desde a posse, o presidente deu vários sinais de desconexão com a bandeira anticorrupção e pró-Lava Jato de Moro. Uma amostra veio com a decisão de retirar da estrutura do Ministério da Justiça o Coaf, o órgão de inteligência financeira do governo, tão útil às investigações que catapultaram a imagem do ministro. Um auditor da Receita escolhido a dedo por Moro para comandar a seção foi demitido sumariamente por decisão do presidente. O ministro até tentou segurá-lo, assim como vinha fazendo com Maurício Valeixo, mas não conseguiu. O Coaf acabou transferido para o Banco Central.
Havia dias que o humor de Moro não estava nos seus melhores níveis. Os recados enviados por Bolsonaro indicavam que a conversa, marcada para as 9h15 da manhã desta quinta, poderia não ser agradável. A agenda presidencial previa 20 minutos de audiência – tempo suficiente para a comunicação da decisão de demitir o diretor da PF, mas curtíssimo para resolver um imbróglio que viraria o assunto mais importante do governo nas horas seguintes. O encontro mal tinha terminado e já corriam rumores sobre a conversa. Ao repórter Igor Gadelha, de Crusoé, uma fonte palaciana confirmou que Bolsonaro comunicara a Moro sua decisão de mandar Maurício Valeixo embora. Indagada se o ministro permaneceria no governo, a mesma fonte respondeu secamente, já indicando a dúvida que tomaria conta das conversas dali em diante: “Não posso garantir”.
Moro evitou falar publicamente sobre o assunto. Nos bastidores, a pessoas de sua confiança, ele confirmou que estava demissionário, conforme informou Crusoé. Familiares do ministro o incentivavam mais e mais a deixar o governo – ele já vinha recebendo conselhos nesse sentido havia algum tempo. À tarde, Moro se trancou no gabinete. O pedido de demissão deflagrou uma intensa operação de bastidores para tentar demovê-lo da ideia. A ala militar do governo, com a qual o ministro sempre manteve uma relação muito próxima, foi a campo. Os ministros Walter Braga Netto, da Casa Civil, e Fernando Azevedo, da Defesa, telefonaram. Parlamentares aliados do Planalto também se mobilizaram em iniciativas um tanto curiosas – uma deputada mandou para Moro o print de uma tela mostrando a Bolsa de Valores em queda ante as notícias da demissão. “É isso que vai acontecer com o Brasil se você sair”, escreveu ela. Bolsonaro evitou tratar publicamente do tema. Em uma live já no início da noite, não falou de Moro.
O desembarque de Sergio Moro em Brasília para ser ministro de Jair Bolsonaro, em janeiro do ano passado, foi o segundo dele na capital. A passagem anterior foi para assessorar a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do mensalão petista. Especialista em crimes financeiros, o paranaense de Maringá, hoje com 47 anos, entrou na carreira de juiz em 1996. Em 2003, assumiu a vara especializada em lavagem de dinheiro em Curitiba. Foi a partir de lá que ele conduziu primeiro os processos do rumoroso Caso Banestado, que apurou a evasão de mais de 100 bilhões de reais, e depois a Lava Jato, a maior operação anticorrupção da história nacional.
Ao longo da carreira, o juiz foi assimilando os erros e (poucos) acertos da Justiça nos casos envolvendo criminosos de colarinho branco. Em 2004, o fã da operação italiana Mãos Limpas escreveu um artigo sobre o que seria preciso para algo parecido ocorrer no Brasil. A receita foi levada ao pé da letra a partir da descoberta das tramoias financeiras do doleiro Alberto Youssef, que resultaram no desmonte do bilionário esquema de corrupção armado na Petrobras e à inimaginável prisão de empreiteiros bilionários e de políticos estrelados, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As investigações do petrolão deram início a muitas outras, com a constatação de que a mesma lógica se reproduzia em governos estaduais, em outras estatais e em ministérios com polpudos orçamentos. A Lava Jato virou uma franquia.
Moro terminou a quinta-feira sem dizer se fica ou se sai. A quem buscava uma resposta, ele repetia que ainda não era hora de falar sobre o assunto e pedia desculpas. Fontes do governo diziam que estava em curso uma tentativa de solucionar o conflito – mais uma. De um lado, o esforço era para fazer Bolsonaro ceder de maneira a explicitar que ele não quer intervir na Polícia Federal. De outro, funcionários graduados do Planalto tentavam sondar o ministro sobre quais soluções o agradariam e seriam suficientes para fazê-lo ficar. O ex-juiz já havia rejeitado peremptoriamente o nome de Anderson Torres, delegado da PF e atual secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, amigo de Bolsonaro e o preferido do presidente. Também resistia ao nome de Alexandre Ramagem, outro delegado da lista de opções do Planalto. Hoje no comando da Abin, a agência de inteligência do governo, Ramagem é outro que mantém relações estreitas com a primeira-família, em especial com Carlos Bolsonaro, o filho 02 do presidente. A aproximação se deu ainda na campanha – ele coordenou a segurança de Bolsonaro após o atentado a faca sofrido pelo presidente. Antes da nova crise, Moro até tinha um nome para suceder Valeixo, desde que a transição ocorresse sem atropelos: o do delegado Fabiano Bordignon. Diretor do Departamento Penitenciário Nacional, ele é um velho conhecido do ministro. A dúvida, nesta quinta, era se essa solução ainda seria capaz de segurá-lo — e se, além disso, Bolsonaro estaria disposto a topar um nome de fora de sua lista.
Até o fechamento desta edição, o drama da vez em Brasília seguia sem um desfecho.
Atualização: no final da manhã desta sexta-feira, 24, em um duro pronunciamento no auditório do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro confirmou sua saída do governo, como Crusoé antecipou na véspera. O ex-juiz da Lava Jato afirmou, em uma passagem do discurso que pode causar sérios danos a Jair Bolsonaro, que o presidente queria interferir diretamente na Polícia Federal, com interlocução direta e acesso a informações sigilosas, por exemplo. Moro disse ainda que Bolsonaro se mostrou preocupado com o desenrolar de inquéritos em curso no Supremo Tribunal Federal, cujas investigações são conduzidas pela PF.
Acompanhe a cobertura dos desdobramentos da saída de Moro do governo em nosso Diário.
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