Adriano Machado/Crusoéxxx

O auge do conflito

A turbulenta relação de Bolsonaro com Sergio Moro vai ao ponto máximo após o presidente decidir pela demissão do chefe da Polícia Federal
24.04.20

A já abalada relação de Sergio Moro com Jair Bolsonaro nunca tinha chegado ao nível de estresse registrado nesta quinta-feira, 23. Logo pela manhã, o ex-juiz da Lava Jato foi ao Palácio do Planalto para uma audiência com o presidente e, lá, ouviu o que não gostaria de ouvir: Bolsonaro comunicou que decidira trocar o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, amigo pessoal e homem da estrita confiança de Moro desde os primórdios da força-tarefa de Curitiba que pôs na cadeia os artífices do petrolão.

Há tempos o presidente demonstrava insatisfação com Valeixo. E há tempos Moro agia como um zagueiro para tentar impedir a troca. Até então, ele vinha ganhando as divididas. O diretor-geral da PF, órgão situado debaixo da estrutura comandada por Moro, caiu em desgraça com Bolsonaro porque deixou correr soltas investigações incômodas para a família presidencial, especialmente no Rio de Janeiro, a terra dos Bolsonaro. O ambiente ficou ainda mais degradado em razão da própria relação do presidente com Sergio Moro: assim como via em Luiz Henrique Mandetta um ministro que corria em raia própria, dissociada do governo, Bolsonaro enxerga em Moro um subordinado que não liga muito para o que pensa e o que quer o chefe. Por isso, há tempos vem ensaiando um movimento para mostrar quem manda.

Em mais uma das já tradicionais entrevistas à porta do Palácio da Alvorada, ele disse logo após a demissão de Mandetta que outros ministros sentiriam brevemente o peso de sua caneta. Moro sabia que era o destinatário do recado. Nas últimas semanas, havia farejado que o presidente voltaria à carga no esforço para demitir Valeixo e, assim, testar seu grau de subordinação. Nos episódios anteriores, a vontade do ministro prevaleceu. Foi assim, por exemplo, quando Bolsonaro ordenou a demissão do chefe da PF no Rio de Janeiro – uma medida mal digerida na corporação, justamente pela leitura de que se tratava de uma interferência indevida do presidente na hierarquia de um órgão que deve ser de estado, e não de governo. Moro e Valeixo reagiram. Deixaram clara a insatisfação. O presidente tornou público que demitiria também o diretor-geral. Por fim, vieram os panos quentes.

Mais adiante, Bolsonaro deixou correr solta a articulação de aliados para cindir o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Desta feita, a caneta do próprio Moro estava em xeque. Defendida publicamente por amigos do peito do presidente, como o ex-deputado Alberto Fraga, a medida embutia mais uma vez a intenção de mexer na PF. Com a separação, a corporação passaria ao organograma do Ministério da Segurança. Moro perderia poder. E perderia a joia de sua coroa – a PF, afinal, é um dos pilares da Lava Jato e parte integrante da estratégia de combate à corrupção que o fez aceitar o convite para deixar a toga e virar ministro. O clima pesou novamente. Moro deixou claro ao presidente seu descontentamento com o movimento que tinha o próprio Bolsonaro como patrocinador. Temendo a reação do ministro, o mais popular entre todos do governo, o presidente recuou.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressMaurício Valeixo, o diretor-geral da PF, está na origem da crise
Nas últimas semanas, apostando que a atenção à pandemia de coronavírus permitiria fazer a troca sem grandes ruídos, Jair Bolsonaro voltou à carga. Contribuíram para a decisão informes de que a PF estaria avançando sobre os batalhões bolsonaristas que agem nas profundezas da internet atacando, com armas de diferentes calibres, quem critica o presidente. Em paralelo, Bolsonaro foi informado de que a direção da polícia não vinha se mostrando muito disposta a seguir pistas encaminhadas pelo próprio Planalto sobre supostos desvios de recursos em contratos firmados pelos governos do Rio e de São Paulo – comandados por Wilson Witzel e João Doria, seus inimigos. Uma dessas pistas envolvia uma organização não-governamental representada por um lobista que estaria exercendo influência sobre as contratações fluminenses e paulistas. A PF entendeu que o Palácio estava encomendando investigações com interesse político, e reagiu mal à orientação. Foi o bastante para Jair Bolsonaro reavivar o discurso de que a corporação, sob Moro, se transformou numa ilha autônoma, dissociada do governo – leitura que, por sinal, ele faz do ministério de Moro como um todo.

Estava dada a oportunidade para mais um “teste da caneta”: depois de Mandetta, o presidente colocaria o ministro da Justiça e Segurança na berlinda. A crise do coronavírus ajudou a aprofundar o descontentamento do presidente com o ex-juiz. Bolsonaro reclamou, repetidas vezes, da postura de Moro: dizia que ele, como chefe da pasta da Justiça, deveria estar mais empenhado em ajudar a colocar de pé, do ponto de vista jurídico, a sua estratégia de enfrentamento à pandemia. Mas o ministro parecia cada vez mais alinhado à postura defendida por Mandetta, em favor do isolamento social. A irritação aumentou ainda mais quando, no auge da briga do presidente com o então chefe da Saúde, a mulher de Moro, a advogada Rosângela Wolff, publicou em uma rede social uma indicação pública do lado em que estava a família: “In Mandetta we trust” (em Mandetta nós confiamos, em tradução livre do inglês).

Voltou então a ganhar corpo, na cabeça e nas conversas do presidente, a leitura de que Sergio Moro estaria mais preocupado com seus projetos pessoais do que com o governo como um todo. Também voltou à cena um fantasma que assombra Bolsonaro há tempos: ele acredita que Moro não compartilha de suas ideias e usa a posição no ministério como trampolim para tentar se eleger presidente em 2022. A alta aprovação popular do ministro, bem superior à do chefe, é outro fator de desgaste.

Da parte do ministro também há razões de sobra para se queixar — e para desconfiar — de Jair Bolsonaro. E não é de hoje. Em menos de um ano e meio desde a posse, o presidente deu vários sinais de desconexão com a bandeira anticorrupção e pró-Lava Jato de Moro. Uma amostra veio com a decisão de retirar da estrutura do Ministério da Justiça o Coaf, o órgão de inteligência financeira do governo, tão útil às investigações que catapultaram a imagem do ministro. Um auditor da Receita escolhido a dedo por Moro para comandar a seção foi demitido sumariamente por decisão do presidente. O ministro até tentou segurá-lo, assim como vinha fazendo com Maurício Valeixo, mas não conseguiu. O Coaf acabou transferido para o Banco Central.

Isac Nóbrega/PRIsac Nóbrega/PRBraga Netto, o chefe da Casa Civil, entrou na operação para convencer Moro a ficar no governo
Bolsonaro tomou a decisão sobre o Coaf movido pela escalada das investigações sobre seu filho 01, Flávio Bolsonaro, acusado de embolsar parte do salário de funcionários de seu gabinete nos tempos em que era deputado estadual no Rio. Foi um relatório do conselho que deu origem à apuração. Também desagradaram Moro os sinais da aproximação do presidente com Dias Toffoli, Gilmar Mendes e outros poderosos críticos da Lava Jato, no que foi entendido como um “acordão” para impor limites à operação e ao poder do ministro. Na conversa de ontem com o presidente, Moro fez questão de lembrar que, ao ser convidado, Bolsonaro havia garantido a ele carta branca para comandar o ministério e para potencializar os efeitos da ação anticorrupção inaugurada em Curitiba.

Havia dias que o humor de Moro não estava nos seus melhores níveis. Os recados enviados por Bolsonaro indicavam que a conversa, marcada para as 9h15 da manhã desta quinta, poderia não ser agradável. A agenda presidencial previa 20 minutos de audiência – tempo suficiente para a comunicação da decisão de demitir o diretor da PF, mas curtíssimo para resolver um imbróglio que viraria o assunto mais importante do governo nas horas seguintes. O encontro mal tinha terminado e já corriam rumores sobre a conversa. Ao repórter Igor Gadelha, de Crusoé, uma fonte palaciana confirmou que Bolsonaro comunicara a Moro sua decisão de mandar Maurício Valeixo embora. Indagada se o ministro permaneceria no governo, a mesma fonte respondeu secamente, já indicando a dúvida que tomaria conta das conversas dali em diante: “Não posso garantir”.

Moro evitou falar publicamente sobre o assunto. Nos bastidores, a pessoas de sua confiança, ele confirmou que estava demissionário, conforme informou Crusoé. Familiares do ministro o incentivavam mais e mais a deixar o governo – ele já vinha recebendo conselhos nesse sentido havia algum tempo. À tarde, Moro se trancou no gabinete. O pedido de demissão deflagrou uma intensa operação de bastidores para tentar demovê-lo da ideia. A ala militar do governo, com a qual o ministro sempre manteve uma relação muito próxima, foi a campo. Os ministros Walter Braga Netto, da Casa Civil, e Fernando Azevedo, da Defesa, telefonaram. Parlamentares aliados do Planalto também se mobilizaram em iniciativas um tanto curiosas – uma deputada mandou para Moro o print de uma tela mostrando a Bolsa de Valores em queda ante as notícias da demissão. “É isso que vai acontecer com o Brasil se você sair”, escreveu ela. Bolsonaro evitou tratar publicamente do tema. Em uma live já no início da noite, não falou de Moro.

O desembarque de Sergio Moro em Brasília para ser ministro de Jair Bolsonaro, em janeiro do ano passado, foi o segundo dele na capital. A passagem anterior foi para assessorar a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do mensalão petista. Especialista em crimes financeiros, o paranaense de Maringá, hoje com 47 anos, entrou na carreira de juiz em 1996. Em 2003, assumiu a vara especializada em lavagem de dinheiro em Curitiba. Foi a partir de lá que ele conduziu primeiro os processos do rumoroso Caso Banestado, que apurou a evasão de mais de 100 bilhões de reais, e depois a Lava Jato, a maior operação anticorrupção da história nacional.

Ao longo da carreira, o juiz foi assimilando os erros e (poucos) acertos da Justiça nos casos envolvendo criminosos de colarinho branco. Em 2004, o fã da operação italiana Mãos Limpas escreveu um artigo sobre o que seria preciso para algo parecido ocorrer no Brasil. A receita foi levada ao pé da letra a partir da descoberta das tramoias financeiras do doleiro Alberto Youssef, que resultaram no desmonte do bilionário esquema de corrupção armado na Petrobras e à inimaginável prisão de empreiteiros bilionários e de políticos estrelados, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As investigações do petrolão deram início a muitas outras, com a constatação de que a mesma lógica se reproduzia em governos estaduais, em outras estatais e em ministérios com polpudos orçamentos. A Lava Jato virou uma franquia.

Moro terminou a quinta-feira sem dizer se fica ou se sai. A quem buscava uma resposta, ele repetia que ainda não era hora de falar sobre o assunto e pedia desculpas. Fontes do governo diziam que estava em curso uma tentativa de solucionar o conflito – mais uma. De um lado, o esforço era para fazer Bolsonaro ceder de maneira a explicitar que ele não quer intervir na Polícia Federal. De outro, funcionários graduados do Planalto tentavam sondar o ministro sobre quais soluções o agradariam e seriam suficientes para fazê-lo ficar. O ex-juiz já havia rejeitado peremptoriamente o nome de Anderson Torres, delegado da PF e atual secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, amigo de Bolsonaro e o preferido do presidente. Também resistia ao nome de Alexandre Ramagem, outro delegado da lista de opções do Planalto. Hoje no comando da Abin, a agência de inteligência do governo, Ramagem é outro que mantém relações estreitas com a primeira-família, em especial com Carlos Bolsonaro, o filho 02 do presidente. A aproximação se deu ainda na campanha – ele coordenou a segurança de Bolsonaro após o atentado a faca sofrido pelo presidente. Antes da nova crise, Moro até tinha um nome para suceder Valeixo, desde que a transição ocorresse sem atropelos: o do delegado Fabiano Bordignon. Diretor do Departamento Penitenciário Nacional, ele é um velho conhecido do ministro. A dúvida, nesta quinta, era se essa solução ainda seria capaz de segurá-lo — e se, além disso, Bolsonaro estaria disposto a topar um nome de fora de sua lista.

Até o fechamento desta edição, o drama da vez em Brasília seguia sem um desfecho.

Atualização: no final da manhã desta sexta-feira, 24, em um duro pronunciamento no auditório do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro confirmou sua saída do governo, como Crusoé antecipou na véspera. O ex-juiz da Lava Jato afirmou, em uma passagem do discurso que pode causar sérios danos a Jair Bolsonaro, que o presidente queria interferir diretamente na Polícia Federal, com interlocução direta e acesso a informações sigilosas, por exemplo. Moro disse ainda que Bolsonaro se mostrou preocupado com o desenrolar de inquéritos em curso no Supremo Tribunal Federal, cujas investigações são conduzidas pela PF.

Acompanhe a cobertura dos desdobramentos da saída de Moro do governo em nosso Diário.

Com reportagem de Igor Gadelha e Mateus Coutinho.

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