Bruno Rocha /Fotoarena/Folhapress

O Big Brother do vírus

Na crise, governos recorrem a dados de celulares para monitorar movimentação dos cidadãos e abrem um novo debate sobre a privacidade no mundo digital
17.04.20

Ansioso em mostrar serviço no combate ao coronavírus, o prefeito de Nova York, o democrata Bill de Blasio, divulgou uma mensagem no Twitter no início de março. “Nós podemos confirmar oficialmente mais informações do segundo caso de coronavírus ligado a Nova York. O indivíduo buscou atendimento no dia 27 de fevereiro no Hospital Lawrence, em Westchester. Ele trabalha na Lewis and Garbuz, uma banca de advogados em Manhattan”. Em seguida, Blasio citou o nome das duas escolas onde os filhos do paciente estudavam.

Três dias depois, a mulher do “indivíduo”, Adina Lewis Garbuz, cujo sobrenome batiza a banca, escreveu uma mensagem no Facebook. “Nós gostaríamos que esse assunto tivesse ficado em privado”, disse ela logo no início do texto. “Quando soube pela primeira vez que (meu marido) Lawrence era positivo, reconheci imediatamente que teríamos um pandemônio pela frente. Fechamos as janelas, desligamos a internet e, juntos, permanecemos fortes e de bom humor. Ainda bem que meus filhos, ainda relativamente jovens, tiveram a sabedoria de manter a cabeça clara e se concentrar apenas no importante, na saúde do pai e daqueles que estão à nossa volta.”

Em vários países do mundo, a urgência criada pela pandemia e a pressão sobre os governantes têm colocado em xeque o direito à privacidade. Mesmo democracias consolidadas, como os Estados Unidos, têm tido dificuldade em equilibrar as necessidades de saúde com o respeito aos direitos dos cidadãos à intimidade. Em grande parte, o problema ocorre porque a tecnologia disponível hoje permite que se faça de tudo. É possível rastrear as pessoas, obrigar que elas fiquem em suas casas e divulgar suas identidades na internet.
Nos tempos atuais, em que uma simples pesquisa na internet pode ser suficiente para desnudar informações cruciais sobre qualquer um, a discussão parece bizantina. Mas a pandemia realçou o debate.

Xinhua NewsXinhua NewsPelo mundo, governos adotaram até monitoramento de cidadãos por satélite
Para impedir a exposição desnecessária das pessoas, em primeiro lugar é preciso que os governantes tenham escrúpulos. Mas essa não é a regra do mundo. Na Índia, a população tem sido orientada a baixar, em seus celulares, aplicativos que enviam informações para o governo. No estado de Karnataka, aqueles que foram diagnosticados com o coronavírus passaram a ser monitorados por satélite ou GPS. Além disso, precisam enviar selfies de hora em hora pelo aplicativo para provar que não se aventuraram na rua.

“Nossas autoridades tomaram medidas intrusivas de vigilância que surpreenderiam até alguns norte-coreanos”, diz Ravi Nair, do Centro de Documentação em Direitos Humanos do Sudeste da Ásia, em Nova Déli. “Além disso, muitos estados da Índia estão divulgando os nomes das pessoas que estão com coronavírus, o que encoraja a vigilância dos vizinhos.”

Um fator que pode ajudar a proteger a privacidade é a escolha correta da tecnologia empregada nos sistemas que medem a circulação de pessoas. Há seis métodos diferentes para rastrear os indivíduos. O por satélite, como o usado na Índia, é o que mais pode vazar dados pessoais. A triangulação de antenas de telefonia celular, sistema usado também pelo governo do estado de São Paulo, é tido como segura pelos especialistas. A cada três segundos, os celulares se conectam com as três antenas de comunicação mais próximas. A partir dessa informação, as operadoras conseguem saber a localização dos aparelhos de seus clientes e desenham mapas de calor. Nas imagens, manchas verdes, amarelas e vermelhas indicam as regiões em que a população está ou não obedecendo a quarentena. Em sua defesa, os responsáveis pela tecnologia garantem que quando o governo acessa essa base de dados pela internet, não há como obter dados pessoais, apenas “objetos móveis”, que não têm nome ou número de celular.

Gabriel Cabral/FolhapressGabriel Cabral/FolhapressSala em São Paulo onde técnicos recebem os dados enviados pelas antenas
Pelas leis brasileiras, dados sobre a localização dos aparelhos que não trazem informações pessoais podem ser usados livremente — são chamados de “anonimizados”. A questão, porém, invadiu a arena política nos últimos dias. Virou um dos temas da queda de braço entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria. Na segunda, 13, Bolsonaro ordenou que um projeto semelhante ao de São Paulo, no nível federal, fosse suspenso. Quem estava tocando isso era Marcos Pontes, ministro da Ciência e Tecnologia. No final de março, ele anunciou que usaria os dados de celulares para monitorar a movimentação das pessoas. Como o presidente criticou a medida, Pontes recuou e disse que seria preciso conferir antes se o sistema respeitava de fato a privacidade das pessoas. O deputado federal Eduardo Bolsonaro comemorou o cancelamento da ferramenta no Twitter: “Presidente Bolsonaro suspende espionagem de brasileiros através do uso de dados de celulares sem autorização. Enquanto isso, governadores fazem o inverso e invadem a privacidade do povo sem nenhum consentimento. Quem é o ditador?”.

Noves fora a disputa de discursos, não há evidências de que, por aqui, governos estejam se aproveitando da crise para espionar as pessoas. Pela legislação, seria possível até dar um passo além e cruzar esses dados com a base da Secretaria Estadual de Saúde. Nesse caso, a união das informações permitiria monitorar o deslocamento das pessoas com coronavírus. “O governo poderia trabalhar livremente com seus próprios dados. O que ele não poderia fazer, em hipótese alguma, é divulgar a identidade das pessoas”, diz o advogado Renato Opice Blum, especialista em direito digital.

Em Israel, o desejo de acompanhar a evolução dos casos quase colocou a população inteira na mira do governo. Todos os habitantes que entravam em um centro de saúde passaram a ser vigiados remotamente. Após um grupo de advogados entrar com uma ação, a Corte Superior de Justiça determinou que somente aqueles com a Covid-19 poderiam ser seguidos. A Corte também pediu que o Parlamento validasse a iniciativa. “Foi uma medida muito inteligente. Ao colocar o Congresso no jogo, o risco de o Executivo cometer excessos diminuiu bastante”, diz Rafael Zanatta, coordenador de pesquisa do Data Privacy, uma entidade de ensino e pesquisa em privacidade.

Na Coreia do Sul, o rastreamento de pessoas infectadas chegou a tal extremo que o governo também foi obrigado a voltar atrás. Aproveitando-se de informações que o governo disponibilizava na internet, empresas privadas criaram aplicativos para celulares. Um deles, o Corona100, permite que um usuário saiba a proximidade que ele está de pessoas com coronavírus. Também é possível saber a data em que essa pessoa fez o teste, sua nacionalidade, sexo, idade e por onde andou. Ao se dar conta que essa exposição poderia desencorajar os cidadãos a fazer os testes para a Covid-19, o governo optou por ser mais cauteloso com o que coloca na rede. “Nós agora vamos balancear o valor da proteção dos direitos de privacidade e o valor do interesse público em prevenir o alastramento do vírus”, disse o diretor do Centro de Controle e Prevenção da Coreia do Sul, Jung Eun-kyeong.

Na Itália, um aplicativo permitirá rastrear as pessoas com as quais um infectado com coronavírus teve contato anteriormente. Dessa forma, será possível alertar as pessoas que possam ter sido contaminadas e pedir para que elas se isolem ou façam o teste. O software, que não será obrigatório, utiliza a tecnologia Bluetooth, que permite a comunicação a curtas distâncias. Quando dois aparelhos de celulares estiverem a 1 metro de distância, os telefones trocam informações e guardam os dados para um possível uso no futuro.

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