Ele não pode falhar
O Hospital de Amor, até há pouco conhecido como Hospital do Câncer de Barretos, atende quase 200 mil pacientes por ano, com qualidade e tecnologia de centros oncológicos privados de ponta. Na tarde de 31 de janeiro deste ano, o médico carioca Nelson Teich chegou à cidade, conhecida internacionalmente por seus rodeios, para tentar entender os segredos da excelência do hospital, onde a maior parte dos pacientes vem do Sistema Único de Saúde. Quase três meses antes de virar ministro, o oncologista havia começado um périplo por unidades de referência do SUS em busca de soluções comuns que pudessem ser replicadas para todo o sistema público. Naquela sexta-feira, o coronavírus ainda não havia chegado ao Brasil nem pairavam ameaças de demissão sobre o então chefe do Ministério da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Teich, que pouco antes de Jair Bolsonaro tomar posse havia sido cotado para a cadeira, já não tinha a perspectiva de assumi-la. Mas, segundo amigos, o médico e empresário já amadurecia um sonho antigo de trabalhar com gestão pública de saúde.
Naquela tarde, ele conversou longamente com o diretor do hospital, Henrique Prata. Interessado em conhecer as minúcias da gestão, o oncologista tentava desvendar como é possível oferecer saúde de qualidade com restrições orçamentárias. Saiu satisfeito com o que viu e convencido de que é possível reproduzir boas práticas em prol de um serviço público de qualidade. Agora, à frente da pasta na pior crise sanitária do século, ele terá que enfrentar desafios de curtíssimo prazo para salvar vidas e evitar o caos hospitalar antes de dedicar-se a planos mais audaciosos para a administração pública. Um desses desafios é de caráter político, e não técnico: depois da colisão entre o presidente Jair Bolsonaro e seu antecessor, o médico terá que conciliar interesses e medir atos e palavras, sem desviar-se, contudo, dos consensos mundiais em torno da Covid-19. Bolsonaro, por sua vez, também já se adapta. Para conseguir contratar um nome com respaldo da comunidade médica, o presidente também fez ajustes no discurso. Nesta quinta-feira, 16, durante a apresentação do novo auxiliar, Bolsonaro falou em retomada “gradativa” das atividades e adotou termos bem diferentes dos entoados até então contra o chamado isolamento social horizontal.
Aos 62 anos, formado em medicina pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a UERJ, e especialista em oncologia pelo Instituto Nacional do Câncer, o Inca, Nelson Luiz Sperle Teich sempre se dedicou profissionalmente à busca da inovação e do conhecimento de ponta. Fez especializações em gestão na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e doutorado na Universidade de York, na Inglaterra. Em 1990, fundou o Grupo Clínicas Oncológicas Integradas, um grande conglomerado médico-empresarial com 18 unidades no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Pernambuco. Há dois anos, vendeu a empresa para a United Health Group, controladora da Amil, e abriu uma empresa de consultoria em saúde. A vida atribulada de gestor de um meganegócio ficou para trás e Teich decidiu que precisava de um novo propósito. “Com a venda da clínica, ele resolveu a vida financeira e ficou em busca de uma causa. Queria muito se dedicar ao serviço público e aplicar a experiência de gestão em saúde em prol da sociedade”, conta a médica Angélica Nogueira, amiga de Teich desde os tempos do Inca, e diretora da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. Angélica acompanhou o novo ministro na visita ao hospital de Barretos, em janeiro. “Chamou atenção como ele estava interessado em entender as soluções e buscar as melhores práticas. Já estava em um processo voluntário de estudar as melhores práticas do SUS”, relembra.
“Ele é uma referência nacional, um profissional excepcional. É um gestor que soube atravessar crises e aprimorar a administração. Fez doutorado na Inglaterra, é muito focado em ciência e, sobretudo, um bom negociador”, descreve a amiga. Para ela, ainda que sob pressão política, Nelson Teich não vai se desviar de sua formação técnica, embora tenha dito, ao ser apresentado como novo ministro no Palácio do Planalto, que está totalmente alinhado com o presidente. “Ele não renunciará aos seus princípios, nem tomará decisões que possam colocar a população em risco”, garante Angélica. Apesar de ter se posicionado contra a demissão de Mandetta, a comunidade médica recebeu com entusiasmo a escolha de Teich. O presidente da Associação Médica Brasileira, Lincoln Lopes Ferreira, participou da reunião dele com Bolsonaro e avalizou a escolha. “É um nome que conta com nosso total apoio, e pelo qual temos muita simpatia. Respeitado na classe médica, eminentemente técnico, gestor e altamente preparado para conduzir o Ministério da Saúde”, afirmou Lincoln.
Teich chegou ao Planalto para o encontro com o presidente recebendo as honras de ministro. A escolha já estava praticamente selada, depois de sucessivas conversas telefônicas e teleconferências na véspera. Só faltava uma conversa final para alinhar o discurso e as ideias. Durante pouco mais de uma hora e meia, na companhia de seus ministros mais próximos, entre eles os do núcleo militar, o presidente quis passar em revista as opiniões do médico sobre a crise do coronavírus. Também quis ouvi-lo sobre os problemas gerais do sistema de saúde brasileiro.
Àquela altura, Mandetta ainda era oficialmente ministro e havia sido convocado para estar no Planalto pontualmente às 15h45. Era evidente que o chamado era para sacramentar a demissão. E foi. A reunião com o presidente, foi rápida. Durou cerca de meia hora. Na sequência, o Planalto confirmou oficialmente o nome de Teich como novo ministro. Em um pronunciamento inaugural curto, o oncologista evitou polêmicas. “O que a gente está fazendo aqui hoje é trabalhar para que a sociedade retome de forma cada vez mais rápida uma vida normal. A gente trabalha pelo país e pela sociedade”, disse ele, ao lado de Bolsonaro. Ao abordar um tema caro ao presidente, a dicotomia entre a saúde e a economia no combate ao coronavírus, o oncologista afirmou que não pode haver oposição entre uma coisa e outra. “São coisas complementares.” Em artigo publicado na internet no começo do mês, Teich fez uma defesa veemente do isolamento social. Disse que a condução da crise havia sido “perfeita” até o momento e defendeu a adoção de um isolamento “estratégico”, com o uso de testes em massa e do monitoramento da população por telefone celular – algo, aliás, questionado nos últimos dias por Bolsonaro e seus filhos.
“Felizmente, apesar de todos os problemas, a condução até o momento foi perfeita. Pacientes e sociedade foram priorizados e medidas voltadas para o controle da doença foram tomadas. Essa escolha levou a riscos econômicos e sociais, que foram tratados com medidas desenhadas para resolver possíveis desdobramentos negativos das ações na saúde”, afirmou o médico no artigo. No texto, ele citou onze pontos que considera essenciais para vencer a pandemia. Não houve nenhuma menção à cloroquina, remédio visto por Bolsonaro como a tábua de salvação contra o vírus. Para pessoas próximas a Teich, ele deve seguir as diretrizes gerais do antecessor, que via com ressalvas o uso indiscriminado do medicamento.
Em outro artigo publicado em março, o oncologista criticou o primeiro-ministro britânico Boris Johnson e o presidente americano Donald Trump, por subestimarem os impactos da pandemia. “Mesmo que tivessem opiniões diferentes em relação à melhor forma de abordar o problema, ficou impossível para Johnson e Trump correr o risco de cometer uma falha na avaliação e enfrentar as consequências de um erro dessa magnitude”, escreveu.
O apoio da comunidade médica é uma sinalização de que não se deve esperar por mudanças bruscas na política de enfrentamento ao coronavírus. Mudanças bruscas, ressalte-se. Porque mudanças certamente virão. E virão à medida que o novo ministro tiver, segundo ele mesmo disse nos últimos dias, um diagnóstico mais preciso do quadro. Entre seus planos está, por exemplo, a flexibilização do isolamento. Se parece contraditório com o que ele escreveu no artigo recente, a medida está em linha com as conversas mantidas com Bolsonaro e os outros integrantes do governo – antes de desembarcar em Brasília, houve várias conversas de “alinhamento” como ministros palacianos, como os generais Walter Braga Netto, da Casa Civil, e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo. O compromisso com a flexibilização do isolamento horizontal foi determinante para a escolha. Na reunião desta quinta no Planalto, os olhos de Bolsonaro brilharam quando Teich disse que incluiu o “desenvolvimento econômico” entre os cinco fatores essenciais para a saúde pública.
“Tenho algumas ideias na cabeça”, afirmou, deixando claro, porém, que é “técnico e científico” e procurará dar seus passos de acordo com critérios objetivos. Ao falar da necessidade de se fazer mais testes, por exemplo, ele observou que é preciso antes chegar a uma definição sobre o melhor tipo de teste. Depois, é preciso uniformizar, estabelecer um padrão, até para ter uma base sólida de comparação e dados consistentes. “Ele não tem paixão por uma ideia. Ele tem paixão por resolver”, diz um interlocutor ao explicar que Teich não chega para a maior missão de sua vida com dogmas ou receitas pré-concebidas que impeçam a possibilidade de mudar de rumo, se assim entender. “Se a partir dos dados ele chegar à conclusão de que o melhor mesmo era o isolamento horizontal, ele vai brigar por isso.”
Pai de seis filhos e casado com a administradora de empresas Daniela Teich, sua sócia na consultoria em saúde, o novo ministro é tido como uma pessoa introvertida e serena. Também tem fama de bom ouvinte. O trabalho no ministério deve ser facilitado pelo fato de ele já ter se relacionado antes com a pasta que vai comandar: no ano passado, atuou como consultor do secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos de Mandetta, Denizar Vianna, que foi seu sócio e contemporâneo na Uerj. Na campanha vitoriosa de Jair Bolsonaro à Presidência, Teich colaborou com ideias para a área de saúde – foi levado por Paulo Guedes.
Um dos orgulhos do médico, segundo amigos, é a filha Vanessa Teich, que seguiu seus passos na carreira. Engenheira de produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela fez mestrado em tecnologias de saúde na Universidade de York, na Inglaterra, a mesma frequentada pelo pai. Depois de trabalhar mais de uma década como consultora de saúde, Vanessa assumiu no fim de 2019 o cargo de superintendente de Economia da Saúde no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.
Como todos que desembarcam em Brasília para comandar uma área sensível do governo, Nelson Teich terá que deixar a rotina na planície e se adaptar à vida no Planalto, com todos os seus percalços e armadilhas. Quando conseguir superar a crise do coronavírus, terá uma sequência de outros obstáculos para vencer, como a falta de organização e de financiamento para o SUS. Ele conhece de perto uma das adversidades que terá pela frente: o Inca, onde trabalhou, estima para este ano 620 mil novos casos de câncer no Brasil. A cifra fica ainda mais assustadora diante do fato de que menos de 25% das mulheres têm acesso a mamografias. Melhorar a estrutura labiríntica do sistema e a vida dos 70% de brasileiros sem plano de saúde é outra missão complicada que o ministro terá, para além da crise do coronavírus.
Um médico que conhece Teich de perto – e que não tem motivos para incensá-lo – definiu assim o escolhido para o lugar de Mandetta: “Entende de sistemas de saúde, bom caráter, boa pessoa, técnico, nada ideológico, muito economista, com atuação na área de custo/efetividade, não precisa de dinheiro, nem é extremamente vaidoso”. No almoço desta quinta, no Planalto, o novo ministro foi surpreendido por uma pergunta um tanto informal de Jair Bolsonaro. “Tá com tesão?”, indagou o presidente. “Tô”, respondeu Teich, ao que Bolsonaro emendou, referindo-se à crise: “Essa p. é grande. Olha o tamanho. Eu acho que você é um louco de aceitar, mas é de um louco mesmo que eu preciso agora”.
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