RuyGoiaba

A Biblioteca de Babel do Febeapá

17.04.20

O Brasil finalmente chegou ao improvável cruzamento entre Stanislaw Ponte Preta e Jorge Luis Borges. O festival de besteiras que assola o país (Febeapá, na sigla inventada por Ponte Preta, o alter ego do jornalista e humorista Sérgio Porto) de repente se converteu na Biblioteca de Babel do conto do grande escritor argentino: infinita, interminável, capaz de perdurar mesmo depois que a espécie humana se extinguir — o que não deve demorar muito.

A produção de burrice tornou-se caudalosa, torrencial, impossível de catalogar. Nunca dorme, e não será interrompida nem se decretarem um lockdown geral no mundo. No Brasil (mas não apenas nele), está no ar que a gente respira — denso como o de Cubatão nos áureos tempos do fumacê do polo petroquímico –, engloba do Chefe Danação aos milhões de bocas do inferno que falam pelo WhatsApp, procria e joga no mundo novas levas de gente burra, espalha-se ainda mais exponencialmente que o contágio pelo coronavírus.

Outro dia escrevi, aqui mesmo, que somos mais de 200 milhões de tudólogos, e talvez só a neurocirurgia ainda fosse uma área imune à disposição generalizada de abrir a boca para dar palpites idiotas. Pois bem, batemos na trave: hoje a internet é o reino dos infectologistas e epidemiologistas amadores, um lugar de gente que crê sinceramente que, se beber bastante água tônica, mata o coronavírus. Pior: gente que é acolhida nessa crença — ainda que seja no esquema “bater palma para maluco dançar”– em vez de moída na porrada.

Como no Bananão o exemplo vem de cima (Ivan Lessa: “o brasileiro é um povo com os pés no chão. E as mãos também”), quero citar apenas dois episódios que, sem ser o assunto principal desta semana — a brilhante ideia de trocar o ministro da Saúde e seus secretários no meio de uma pandemia –, talvez tenham sido menos notados. São dois pequenos volumes da Biblioteca de Babel do Febeapá, e o objetivo deste texto é preservá-los com carinho para os arqueólogos do ano 3020 que por acaso queiram entender por que o Brasil acabou. Eles certamente vão concluir que fizemos por merecer.

1) A “cura” do coronavírus no teste in vitro

Marcos Pontes, ex-astronauta brasileiro e garoto-propaganda de travesseiro, anunciou ter encontrado “dois remédios” que reduziriam a replicação do coronavírus em células humanas, com “eficácia de 94%” — nos testes in vitro. Um deles, revelou Luiz Henrique Mandetta depois, seria um vermífugo. Qualquer um que tenha alguma familiaridade com ciência sabe que o teste in vitro é ligeiramente diferente das condições do organismo humano: como escreveu o físico e cartunista americano Randall Munroe em sua webcomic XKCD, dar um tiro na lâmina observada in vitro também “mataria o vírus”.

Daqui a pouco aparece alguém do governo sugerindo que óleo de fígado de bacalhau acaba com o vírus e as pessoas só não tomam porque preferem morrer de corona a engolir um troço ruim daqueles. Ou seja, a culpa será nossa.

2) Os “40 milhões de testes” de Paulo Guedes

No mundo encantado de Paulo Guedes, não é preciso que os números tenham nenhuma correspondência, mesmo remota, com a realidade – o que nem seria grande problema se o campeão dos números estapafúrdios não fosse também chefe do Ministério da Economia. Um mês atrás, Guedes ainda dizia acreditar que o Brasil cresceria 2,5% em 2020, mesmo com a devastação causada pelo coronavírus nas economias do mundo todo já em pleno andamento.

E, apenas uma semana atrás, o brilhante economista afirmou a empresários ter conversado com um “amigo na Inglaterra” que criou um tal “passaporte de imunidade”: “Ele coloca disponíveis para nós, brasileiros, 40 milhões de testes [do coronavírus] por mês”. POR MÊS. Segundo um amigo radicado na Alemanha, o país de Angela Merkel, que é o que mais faz testes na Europa, consegue processar 1,5 milhão deles por mês, em mais de 100 laboratórios.

E aparentemente ninguém contesta, ninguém questiona, fica por isso mesmo — se o ministro prometesse “trocentos quaquilhões de testes”, os empresários acreditariam do mesmo jeito. É gente que faz o PIB brasileiro, com essa credulidade de criança que ainda não aprendeu a amarrar os sapatos; não é à toa que alguns deles, ou muitos, acham que o vírus é só uma gripezinha.

Tirem logo o Cristo Redentor e coloquem um Jegue Triunfante no topo do Corcovado. Até porque, ao que parece, Deus já abandonou o Brasil faz tempo.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Estava claríssimo que esse negócio de fazer home office o tempo todo acabaria resultando numa dessas: nesta semana, no Tribunal de Justiça do Amapá, o desembargador Carmo Antônio de Souza compareceu muito à vontade, sem camisa, para a sessão virtual com seus colegas. Souza, evidentemente, não sabia que a sessão já estava no ar e correu para pôr terno e gravata. Meu medo é que um dia alguém se descuide ainda mais e deixe o ônus da prova à mostra.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisO desembargador bem à vontade antes de perceber que a sessão virtual começara

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