DiogoMainardina ilha do desespero

Tigela de Sucrilhos

10.04.20

Sabe quem é Boécio? Nico não sabia. Nico é meu filho. Quando tentei explicar-lhe quem foi Boécio, ele saiu correndo e se trancou no quarto.

Na semana passada, Carlos Andreazza, meu editor, perguntou se eu toparia escrever um livro sobre o período de confinamento. Tenho um contrato suspenso com meu editor. Alguns anos atrás, prometi-lhe um livro, embolsei o adiantamento e dei-lhe um calote. Se eu fizesse um livro sobre o confinamento, conseguiria pagar a dívida com a editora e, ainda por cima, ocuparia meu tempo com um assunto menos idiota do que a cloroquina.

(Tenho um palpite sobre a cloroquina. Acho que ela é tão eficaz para debelar o vírus quanto uma tigela de Sucrilhos. Meu palpite é completamente desprovido de base científica, assim como tudo o que tenho ouvido a respeito do tema nas últimas semanas.)

Ao contrário de Boécio, sairei vivo do meu confinamento. E sairei logo. Se tudo der certo na contabilidade macabra dos mortos, os carcereiros devem me soltar em 4 de maio. Ou em 11 de maio. Como é que vou escrever sobre o confinamento estando em liberdade? Vou querer escrever, claro, sobre a liberdade. E o leitor vai querer ler, claro, sobre a liberdade.

(Na verdade, terei de escrever sobre as manobras para cassar o mandato do presidente brasileiro, que é tão eficaz para debelar o vírus quanto uma tigela de Sucrilhos.)

Escrever sobre a liberdade, porém, também vai ser bizarro. A partir de 4 de maio, de fato, só teremos um simulacro de liberdade. Que vai durar um ano, até alguém inventar uma vacina contra o vírus. Isso quer dizer que meu livro sobre a liberdade terá de ficar para depois, assim como o pagamento da dívida com a editora. A vida e a morte – e as contas atrasadas – devem ficar congeladas por mais algum tempo. Pode sair do quarto, Nico. Prometo parar de falar sobre Boécio.

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