José Dias/PR

O general do deixa disso

Braga Netto, o construtor do “fico” de Mandetta, se assenhora da Casa Civil, exibe sem reservas seu gosto por mandar e ocupa os vazios do Palácio do Planalto
10.04.20

A condução do país sob uma atmosfera de permanente tensão já era uma marca registrada do governo antes mesmo de o novo coronavírus aportar por aqui. Mas nada se aproximou do estresse que tomou conta do Palácio do Planalto durante a batida galopante das horas entre a noite de sábado, 4, e a segunda-feira, 6. O presidente Jair Bolsonaro, segundo relatos de auxiliares, havia saído do prumo. Estava disposto a cortar cabeças. O alvo principal de sua ira era o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a quem acusou nos bastidores de insubordinação. Com ele, sairiam seus assessores diretos na Saúde e quem mais ousasse prestar-lhe solidariedade. O estopim foi a participação do ministro, por 50 segundos, na live da dupla sertaneja Jorge & Mateus, para uma audiência de 3 milhões de espectadores. Insuflado por Carlos, seu filho 02 que havia voltado a dar as caras no Palácio do Planalto, Bolsonaro tomara a decisão no domingo, 5, de fazer uso da caneta para apear Mandetta do ministério. A demissão, em plena pandemia de coronavírus, teria sido efetivada não fossem as pressões em contrário que partiram de membros do STF, de próceres do Congresso e de um personagem que emergiu de maneira decisiva em meio à crise que parecia irrefreável: o ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto.

Em política não há vácuo de poder e, ao primeiro sinal de vacância, Braga Netto tratou de ocupá-lo. O general está à vontade na Casa Civil como se estivesse, com o perdão do trocadilho, em casa. “É o homem certo, no lugar certo, na hora certa”, afirmou ao Estadão o vice-presidente Hamilton Mourão, hoje um dos principais interlocutores do ministro. O general, que se destacou ao liderar a intervenção federal no Rio de Janeiro em 2018, passou a atuar também como uma espécie de “interventor” do Palácio do Planalto. Quando eclodiu a pandemia, Braga Netto foi escalado para comandar o comitê de crise e coordenar as ações do governo federal na área. Mas sua influência e poder já ultrapassaram em muito as fronteiras do “gabinete de situação” de combate à Covid-19. O militar, recém-transferido para a reserva, gosta de mostrar que está no comando. Por exemplo, no novo formato de entrevistas coletivas do Planalto, idealizado por ele depois que Bolsonaro reclamou do excesso de holofotes sobre Mandetta, faz questão de controlar até as perguntas que serão respondidas pelos demais ministros. Na terça-feira, 31, quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, foram perguntados se estavam em sintonia com as ações determinadas pelo ministro da Saúde, o general prontamente interveio: “Os ministros concordam plenamente com a posição do ministro Mandetta”.

Durante as entrevistas, o chefe da Casa Civil usa pedaços de papel para enviar mensagens aos outros ministros. Nos bilhetinhos, em geral, constam orientações sobre como os integrantes do primeiro escalão devem se portar diante de determinadas perguntas. Para não expor os colegas, Braga Netto costuma tomar o cuidado de dobrar o papel algumas vezes evitando que o teor seja captado por câmeras indiscretas.

O chefe da Casa Civil também tem atuado para moderar os ímpetos do presidente. Para contornar o imbróglio envolvendo Bolsonaro e Mandetta, ele agiu de maneira objetiva e com a conhecida disciplina da caserna. Em conversa a sós com Bolsonaro, sopesou prós e contras e concluiu ele mesmo ao presidente: a exoneração de Mandetta provocaria uma pandemia política e representaria o início da débâcle do governo. O general foi direto e reto. Disse que, se demitisse o ministro e desarticulasse a Saúde bem no meio da crise que já havia ceifado a vida de mais de 80 mil pessoas no mundo, Bolsonaro estaria traçando seu próprio destino.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMourão, sobre Braga Netto: “É o homem certo, no lugar certo, na hora certa”
De fato, politicamente para o presidente seria uma hecatombe, principalmente em razão da popularidade de Mandetta, cuja atuação à frente das ações contra a Covid-19 é aprovada hoje por 76% da população. Havia ainda o risco de debandada de ministros. Tereza Cristina, da Agricultura, era uma das que ameaçavam desertar em solidariedade a Mandetta. Também estava em gestação um pedido de impeachment a ser enviado pela OAB ao Congresso, com o propósito de emparedar de vez o presidente. Outra hipótese não descartada, embora mais remota, era a de o STF entrar em cena e tornar sem efeito a demissão. O presidente da República corria o risco de ficar desmoralizado. Metralhado pelos argumentos do general, Bolsonaro admitiu pela primeira vez na tarde de segunda-feira, 6, uma meia-volta volver.

Até então, estava realmente tudo pronto para o abate de Mandetta. Na segunda cedo, a agenda presidencial fazia saber que Bolsonaro receberia em almoço, além de Braga Netto e demais integrantes do núcleo duro palaciano, o deputado Osmar Terra, o ex-ministro da Cidadania cujas ideias incluem críticas às políticas de isolamento — até por isso ele virou o candidato preferido do presidente à vaga de Mandetta. Terra, inclusive, já espalhava a assessores que seria designado para o posto. Mal sabia, àquela altura, que estava queimando a largada. Depois da conversa com Braga Netto, Bolsonaro já havia sido demovido da ideia de formalizar o convite.

Haveria, no entanto, ainda mais dois lances de altíssimo risco nos quais qualquer erro poderia colocar toda a costura do chefe da Casa Civil a perder: a reunião ministerial no final da tarde de segunda-feira, para a qual o ministro da Saúde havia sido convocado, e o pronunciamento do próprio Mandetta, logo na sequência. A reunião ministerial transcorreu em clima tenso, com trocas de farpas de lado a lado. Mandetta fez questão de expor ao presidente e aos colegas de governo a sua insatisfação com as críticas de Bolsonaro. O presidente, por sua vez, afirmou estar sob forte ataque político e cobrou de seus ministros que o defendessem publicamente. Como já havia combinado com Braga Netto, no entanto, ele não oficializou a demissão.

Foi o suficiente para Mandetta regressar ao Ministério da Saúde sentindo-se empoderado. Recebido debaixo de uma salva de aplausos organizada por servidores que o aguardavam do lado de fora do prédio, o ministro fez um longo discurso diante das câmeras logo em seguida e mandou uma série de recados nada amenos ao presidente da República, embora tivesse dito que não deixaria o ministério. Num deles, afirmou que era alvo de críticas não construtivas e que precisava de paz para trabalhar – tudo o que não tinha até então graças às diatribes do presidente.

O caldo parecia ter entornado. Terminado o pronunciamento, Braga Netto entrou de sola. Telefonou para Mandetta e, segundo apurou Crusoé, passou-lhe uma descompostura. O temor de Braga Netto era o de que tudo o que havia sido feito até então para serenar os ânimos fosse por água abaixo. Bolsonaro, de fato, não gostou do tom do subordinado, a quem já tinha acusado de falta de humildade. Num esforço hercúleo, Braga Netto e demais integrantes do círculo mais íntimo do presidente fizeram o presidente enxergar o copo meio cheio. O argumento para convencê-lo foi o de que as declarações de Mandetta poderiam ter sido piores se ele tivesse questionado publicamente a autoridade do presidente, o que não fez. Àquela altura, Bolsonaro também já não tinha muita saída. Mandetta, além de ter superado o chefe em popularidade nas pesquisas, o havia destronado também no terreno preferido dos bolsonaristas, as redes sociais, segundo monitoramento realizado pelo próprio Planalto.

Marcello Casal Jr/ Agência BrasilMarcello Casal Jr/ Agência BrasilMandetta permaneceu à frente da Saúde, mas ainda é alvo de fogo amigo
Ainda desgostoso com o ministro da Saúde, Bolsonaro fez uma única exigência: ele seria mantido no cargo, desde que mudasse o rumo da prosa dali em diante. Os recados chegaram ao ministro num átimo. Coube a Braga Netto fazer a ponte. Mandetta passou então a agir como Bolsonaro queria. Em um encontro tête-à-tête na manhã de quarta, os dois selaram o combinado. “Quem comanda esse time é o presidente Jair Messias Bolsonaro”, afirmou o ministro da Saúde em entrevista na tarde do mesmo dia. Era a primeira vez, desde o início da pandemia do coronavírus, que Mandetta exaltava a liderança do presidente na condução da crise. Braga Netto, enfim, respirou aliviado: entendeu que havia cumprido a sua missão, independentemente do que ainda possa vir a acontecer mais adiante.

Sabe-se em Brasília que Osmar Terra ainda conspira contra Mandetta. Um de seus interlocutores é o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, como mostrou nesta quinta-feira, 9, o canal de notícias CNN Brasil. Em um diálogo entre os dois flagrado pela reportagem da emissora, Onyx, que é da mesma legenda de Mandetta, diz que o presidente Jair Bolsonaro deveria demitir o ministro. “Uma coisa como o discurso da quarentena permite tudo. Se eu tivesse na cadeira (presidencial)… teria cortado a cabeça dele”, diz o titular da Cidadania. Por ora, no entanto, a crise parece debelada. De novo, Braga Netto, procurado por um esbaforido Mandetta na tarde de quinta-feira no Palácio do Planalto, entrou no circuito para apagar o incêndio.

Quem esteve ao lado do general durante a intervenção na segurança pública do Rio diz que o jeitão dele de atuar é semelhante ao que vem adotando à frente da Casa Civil: leal ao chefe, mas desprovido do temor de dizer verdades, e sempre cordial com os colegas, mas sem deixar de ser duro quando preciso. Nas palavras do vice Mourão, Braga Netto não está lá para enquadrar ninguém, apenas para “fazer a verdadeira governança”. “Braga Neto está fazendo o que sabemos: colocar ordem na casa, coordenando as ações ministeriais, de modo que haja sinergia, cooperação e, como consequência, os esforços do governo sejam mais eficazes”, diz o vice-presidente. O objetivo do ministro da Casa Civil, de acordo com Mourão, é estabelecer “um sistema de comando e controle que permita ao presidente tomar decisões”.

A estratégia do ministro de partir para o caminho da conciliação logo o colocou na mira dos apoiadores mais radicais de Jair Bolsonaro. Nas redes, uma parte deles chegou a difundir um boato um tanto surreal — o de que Braga Netto teria sido designado por uma Junta Militar para conduzir o país extraoficialmente. Bolsonaro, nesse caso, ficaria como uma espécie de “rainha da Inglaterra”. Na onda da campanha, houve até quem alterasse os registros da Wikipedia para colocar o ministro como o 39º presidente do Brasil – a mudança foi desfeita tão logo o site a identificou. A versão da conspirata é alimentada por Carlos Bolsonaro e por integrantes da ala ideológica do governo. Ao perceber que os ataques haviam se intensificado ao longo da semana, o próprio Braga Netto foi ao presidente se queixar. Segundo ele, era preciso “manter o comandante informado”.

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