José Patrício/Crusoé

Oliveira, o enfermeiro

Ele deixou a casa em que vivia com a família e foi morar perto do hospital onde trabalha, que ostenta um trágico recorde: o maior número de mortes pelo coronavírus no país
08.04.20

Em meados de março, mortes em série passaram a fazer parte da já funesta rotina de um hospital voltado para o atendimento de idosos na região central de São Paulo. Nada, evidentemente, é capaz de superar a dor de familiares que perderam seus entes queridos para uma doença aterradora, mortal e ainda insondável para a maioria das potências do mundo. Mas essa triste realidade também tem tocado uma equipe de 400 enfermeiros que nunca se sentiu tão exposta como agora, em que está exclusivamente dedicada a cuidar das vítimas do coronavírus. Na linha de frente desse pelotão está Célio Roberto Oliveira.

Há três semanas, o enfermeiro de 42 anos mudou de endereço. Deixou a casa onde vive com a esposa, dois filhos e a sogra em Embu-Guaçu, município a 50 quilômetros da capital paulista, para se abrigar temporariamente em um hotel a dez minutos de carro do hospital. Outros trezentos colegas dele fizeram o mesmo para proteger suas famílias de uma possível infecção. A jornada de trabalho passou a ser de doze horas, intercaladas com um dia de descanso. O cuidado com a alimentação foi redobrado, com a ingestão de suplementos alimentares. Mas nenhum desses recursos parece ter sido mais urgente do que o apoio psicológico. Além do estresse diário dentro do hospital, muitos começaram a ser hostilizados nas ruas por pessoas que veem no jaleco branco um difusor do vírus.

“O nosso maior desafio foi vencer os próprios medos. O vírus não prejudica só a parte física, ele ataca a saúde mental das pessoas. Lembro que a primeira semana foi um choque para todo mundo. Eram muitos casos, muitas perdas. Isso abalou o emocional da equipe, que começou a se cobrar. Algumas pessoas vinham me procurar chorando, tinham medo de ser contaminadas, de levar o vírus para suas casas”, lembra Oliveira. “A gente escutou, deu apoio emocional, folga para quem precisava descansar e afastou quem apresentava qualquer sintoma.” O enfermeiro conta que foram dez baixas temporárias na equipe por contaminação pelo coronavírus. “Nunca vivi nada parecido. A maior angústia é que a gente não sabe quando isso vai parar.”

O hospital onde Oliveira trabalha, o Sancta Maggiore, foi o primeiro a concentrar casos de Covid-19 em São Paulo e exibe um trágico recorde: registra o maior número de mortes por coronavírus no país. Foram, pelo menos, 117 em unidades da rede. Em nenhum outro lugar do Brasil a doença vitimou tantas pessoas até agora. Uma especificidade pode explicar a tragédia: o hospital integra uma rede especializada em atender clientes acima dos 60 anos de idade, os mais suscetíveis ao coronavírus.

José Patrício/Crusoé

O enfermeiro diz que, apesar do cenário tétrico, o medo dos enfermeiros foi sendo superado aos poucos com a disseminação do conhecimento sobre prevenção à doença e com o reforço da proteção individual dos profissionais. Enquanto essas angústias da equipe técnica ficavam escondidas dentro das salas ou atrás dos balcões, o drama vivido pelos pacientes acamados projetava-se no semblante dos familiares que iam visitá-los. No hospital, a média de idade dos internados com coronavírus é de 80 anos. Quase todos têm algum problema de saúde prévio que agrava o quadro clínico e dificulta a recuperação. “O mais difícil neste momento é que você não pode nem dar um abraço para consolar a família.”

Duas semanas atrás, a morte de um senhor de 75 anos comoveu toda a equipe de enfermagem. Asmático, ele trazia consigo, além do vírus, um enfisema pulmonar. A tomografia mostrou que o estado de saúde era delicado, mas as duas filhas estavam confiantes na recuperação do pai. “A gente também achou que ele ia sair dessa. Foi uma batalha. Fizemos de tudo para tentar salvar a vida dele, usamos respirador, mas ele já chegou em um estágio bem grave. A gente via que a família não estava preparada para o pior. Você olha nos olhos da pessoa e não pode desmontar. Quando a gente perdeu esse paciente, doeu em todos nós.”

Se toda a cidade já está há mais de duas semanas sob regime de quarentena, dentro do hospital as regras de isolamento são muito mais rígidas. Os familiares só podem ver os parentes internados por apenas cinco minutos, e através de um vidro. As visitas são limitadas a duas pessoas por paciente e escalonadas com horários pré-agendados conforme a numeração dos leitos, para evitar aglomerações. “Alguns não aceitam as regras, reclamam. A gente se põe no lugar deles. É difícil ter um parente internado e não poder ver direito”, diz o enfermeiro. Oliveira está há 15 dias sem ver os dois filhos e a mulher. O contato com a família está restrito a chamadas de vídeo que faz todas as noites a partir do quarto do hotel. Por vezes, ele não consegue segurar a carga acumulada no hospital e se emociona ao telefone. “Esse vírus está fazendo um estrago enorme em muitas famílias. É triste ver tanta gente dizendo adeus. A gente torce para que isso acabe o quanto antes.”

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  1. Parabéns, enfermeiro Oliveira! Nota-se que você - e o local onde trabalha - é daqueles profissionais que ainda agem com o coração e a empatia. Deus proteja você e toda a sua família. Muito importante, também, os seus auxiliares de enfermagem, os seus técnicos, os motoristas de ambulância, o pessoal da limpeza, os médicos. Sim, daquele profissional que recolhe o lixo, faz a limpeza pesada até o mais brilhante e dedicado médico, todos são indispensáveis! Todos! Uma grande corrente do Bem!

  2. Meus parabéns pela reportagem, mas onde está a que exalta o auxiliar de enfermagem, principalmente o pessoal de hemodiálise que tem muitas vezes realiza seu trabalho com infectados. Crusoé fica esperta e faz uma com esse pessoal.

  3. Li que aos lidar com a higiene dos pacientes a maior incidência de Contaminação é ao lidar com as Fezes desses pacientes que contêm altíssimo o teor do Vírus. Os aparelhos sanitários coletores de aviões de passageiros Embraer são totalmente eficientes e seriam de grande valia para auxiliar esse trabalho temerário, arriscadíssimo e em enorme injusta Frequência Será que se poderia montar um set portátil que andasse pelos leitos e salas ? Um abraço Francisco

  4. Parabéns, Oliveira. Sou filiado a Prevent Senior há 5 anos. Minha mulher, em abril do ano passado, faleceu aí no Hospital Sancta Maggiore do Paraiso, vitima de um cancer. Mas o tratamento que recebeu em todo o decorrer de sua doença (1 ano e meio) pelas equipes das unidades da Prevent Senior por onde passou foi digno de elogios. Vocês, Oiliveira, são uns herois. Continuem em sua luta e contem com a nossa solidariedade e orações para que superem todos os desafios que essa pandemia impõe a todos.

    1. parabéns Oliveira vc é seus colegas de profissão, estão nas minhas preces e na de muita gente com certeza, Vcs são pessoas especiais pela profissão que escolheram, que vc e a sua família sejam amparados e fortalecido pelo misericórdia de Deus.

  5. Em frente, Oliveira ! Nós, de quarentena, estamos acompanhando a labuta de vocês. SAUDE emocional acima de tudo, é o que desejamos a todos da equipe.

  6. Porque alguns profissionais da saúde saem a rua vestindo o avental de trabalho? Entram em padaria, tomam seu cafezinho...esses aventais não estariam contaminados por vírus ou bactérias? Estou formulando a pergunta por desconhecer o assunto!

    1. Nenhuma padaria está servindo cafezinho, desinformado.

  7. Meu eterno agradecimento ao corpo de enfermagem que está na luta contra essa epidemia, neste momento, muito bem representado por você, Oliveira, que personifica o trabalho responsável e extraordinário que vem sendo realizado por tão nobre categoria profissional.

  8. Já foi explicado que o Santa Maggiore é o hospital que atende os conveniados da Prevent Senior, que está fazendo um excelente trabalho junto aos segurados, todos idosos. A Prevent Senior implantou um sistema de Telemedicina que vem apresentado resultados muito satisfatórios. É maldosa, tendenciosa e com forte viés ideológico a afirmação do 'jornalista" que assina a matéria. Ele não diz quantos dos que morreram tinham pelo menos dois ou mais comorbidades. Crusoé cada vez mais no caminho errado.

  9. Como é possível, ver reportagens em vários veículos de imprensa mostrando profissionais de saúde sendo hostilizados no transporte público, nas ruas. São pessoas que estão na linha de frente, enfrentando árduas jornadas, separados da família, estressados, contaminados e também, morrendo por causa do seu trabalho.

    1. Desejo somar-me a todos aqueles que deram seu parabéns aos profissionais da saúde que estão arriscando suas vidas pelo bem da população. Obrigado!

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