Adriano Machado/Crusoé

Fernando, o entregador

Funcionário de aplicativo de entregas se expõe a riscos, o de contágio e outros até insólitos, mas se recusa a parar porque sabe que seu trabalho é essencial em tempos de isolamento
08.04.20

Na tarde de 21 de março, um sábado, Fernando Macedo de Souza, de 38 anos, recebeu mais um chamado no aplicativo de entregas para o qual trabalha. Nada diferente do que estava acostumado a fazer: ele teria de transportar compras de supermercado a um apartamento na Asa Norte, em Brasília. Inadvertidamente, acabou se metendo em uma confusão. Em vez de levar a encomenda para a Asa Norte, dirigiu-se para o lado oposto do Plano Piloto de Brasília, a Asa Sul.

Ao chegar ao destino, ainda sem perceber o equívoco que cometera, identificou-se na portaria do prédio, como de praxe, e anunciou o número do apartamento para o qual imaginava ter de levar as compras. “Você só pode estar de brincadeira”, reagiu o porteiro. O número do apartamento anunciado por Souza não existia naquele prédio. O porteiro julgava estar sendo vítima de algum tipo de golpe ou assalto e reagiu: catou um porrete que estava próximo à bancada da guarita e saiu para afugentar o entregador.

Fernando se afastou e exibiu a mochila na qual os produtos que deveriam ser entregues estavam acondicionados.Em meio à discussão, eis que o síndico do prédio apareceu e, depois de perceber onde estava o erro, o absolveu. “Isso nunca aconteceu comigo. Saí de lá chorando igual a um menino”, diz o entregador.

Fernando começou a fazer entregas por meio de aplicativos em outubro de 2019 para complementar a renda do trabalho de pedreiro. Ele é cadastrado como microempreendedor individual, mas diz que, antes mesmo da pandemia de coronavírus, o setor de construção já estava em baixa, o que o obrigou a ir atrás de um dinheiro extra. A rotina, porém, não tem sido fácil. O episódio com o porteiro ilustra a realidade de entregadores nestes tempos de isolamento social, em que a demanda por entregas tem aumentado exponencialmente. Ele nunca havia confundido um endereço antes, provavelmente porque o volume de trabalho era bem menor. Com o aumento dos chamados, entregadores como ele ficaram mais suscetíveis ao erro e também à doença. Fernando se enquadra no grupo de pessoas que, sem outra opção, precisa trabalhar dia e noite nas ruas e, por isso, estão mais expostas. O risco ampliado, porém, não faz com que ele esmoreça.

Adriano Machado/Crusoé

O entregador costumava tirar folgas às terças e quartas-feiras, dias de movimento mais fraco. Com a população em quarentena, porém, não existe mais dia ruim. A vantagem é que o valor das entregas subiu. No aplicativo onde trabalha, a corrida que era de 6 reais passou para 8, no mínimo. A desconfiança por parte dos clientes também cresceu. O temor, claro, é de que o entregador seja vetor de transmissão do vírus. “Às vezes nem vejo o cliente. Teve outro dia que uma cliente pediu que eu pendurasse as compras na maçaneta da porta e fosse embora. Outra mandou mensagem dizendo que ia me dar gorjeta, mas que o dinheiro estava debaixo da porta”, conta.

Fernando geralmente trabalha no Plano Piloto, embora more no Gama, cidade-satélite distante 38 quilômetros do centro da capital federal. Vive na mesma casa com a irmã, o cunhado e três sobrinhos. Tem cinco filhos, mas nenhum vive com ele. A mãe de Fernando, que tem 83 anos e integra o grupo de risco, mora do outro lado da rua. “Ela não tem saído de lá por nada.” Ciente dos riscos que corre, o entregador optou por trabalhar para apenas um aplicativo, embora tivesse a opção de se inscrever em outros para oferecer o mesmo serviço. O problema, diz, é que a exposição seria ainda maior.

O supermercado onde ele costuma aguardar os chamados dos clientes o obriga a lambuzar as mãos, a bicicleta e a mochila com álcool em gel antes de tocar nas compras. Ao voltar, Fernando repete o procedimento. “Falei com os colegas que daqui a alguns dias nós vamos andar igual àqueles agentes de saúde.” O entregador admite o receio de contrair o vírus. O pior de tudo para ele, porém, seria levar a doença para clientes e para a própria família. “Quando eu chego em casa, coloco álcool até na maçaneta da porta.”

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