Fábio Motta/Crusoé

Fábio, o agente de saúde

Na favela, a missão é levar o alerta a áreas remotas, onde carros não chegam, e distribuir comida e sabão a famílias que vivem na miséria, expostas ao crime
08.04.20

O agente comunitário de saúde Fábio Falcão Monteiro, de 38 anos, enfrenta a Covid-19 no complexo de favelas de Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro, como se ele e os moradores precisassem sobreviver a um naufrágio. Ficou com essa impressão desde o dia 1º, quando foi à Barra da Tijuca, bairro de classe média alta na zona oeste, receber a doação de 2 mil sabonetes de hotel para quem não tem como lavar as mãos na favela. Ao lamentar seus negócios paralisados pela quarentena, o empresário doador comentou que agora conta só com a renda do aluguel de imóveis. “Fizemos essa doação porque estamos todos no mesmo barco”, disse ele. Muito agradecido pelo gesto de solidariedade, Monteiro não comentou, mas intimamente comparou: “É como no Titanic. Os ricos estão na parte de cima com direito a bote salva-vidas e os favelados embaixo, se afogando”.

Enquanto as autoridades de saúde recomendam o uso de álcool em gel e lavar as mãos com frequência, Monteiro faz campanha para os moradores de Manguinhos dividirem baldes de água com os vizinhos que sofrem com as torneiras vazias, como ocorre em parte da favela. Em situações normais, os agentes comunitários visitam casas onde há pessoas com problemas de saúde e encaminham os doentes para tratamento médico. Agora a missão é distribuir cestas básicas e sabão para famílias que vivem na miséria, já debilitadas por males como a tuberculose. Os agentes, Fábio entre eles, também buscam adaptar as orientações de isolamento do Ministério da Saúde à realidade da favela, onde de seis a oito pessoas dividem um único quarto e há até casas sem janelas, verdadeiros porões.

Até segunda-feira, 6, Manguinhos tinha quatro casos confirmados de Covid-19 pela prefeitura. Dois dos infectados são agentes comunitários de saúde, segundo a comissão que representa esses profissionais em Manguinhos e da qual Monteiro está à frente. Ele diz que faltam máscaras e outros equipamentos de proteção para os agentes, que trabalham assustados. Houve ainda a morte suspeita, no dia 3, do presidente da associação de moradores de uma das 14 comunidades do complexo, que também era dono de um sacolão bastante frequentado. Na cidade do Rio, a área mais afetada pela doença, com 118 casos, é a Barra da Tijuca, seguida de bairros da zona sul, mas a Secretaria de Saúde teme que a Covid-19 se espalhe rapidamente pelas inúmeras favelas e amplifique a tragédia.

Há alguns meses, Fábio Monteiro deixou o vínculo com as clínicas da família da comunidade, para trabalhar na cooperação social da Fundação Oswaldo Cruz, uma das principais instituições de combate ao coronavírus no Brasil. O complexo de favelas cresceu no entorno da Fiocruz – criada no início do século passado – e hoje tem cerca de 40 mil habitantes. A comunidade ficou conhecida mundialmente ao ser visitada pelo Papa Francisco, em 2013.

O agente dirige uma Kombi emprestada para coleta de doações, compra e distribuição de alimentos. Na semana passada, ele gastou 4 mil reais – também fruto de doação – comprando produtos para 50 cestas básicas. Levou os alimentos à casa de uma moradora que tem um quintal mais amplo, onde desinfetaram as embalagens antes da entrega. Funcionários da Fiocruz ajudam como podem no fornecimento de cestas. Os agentes de saúde indicam as famílias em situação mais precária para receber o socorro.

Muitas vezes o drama não termina quando a comida chega. Em uma das casas, o gás de cozinha tinha acabado. A agente responsável pela área foi atrás de doação, mas ouviu de possíveis doadores que fornecer o gás já era demais – seria como sustentar por completo a família. Para comprar o botijão, Monteiro retirou 60 reais da arrecadação de uma campanha criada para prestar assistência a atingidos por enchentes e, na noite de sexta-feira passada, levou o gás à família, que tem uma pessoa com tuberculose e, por isso, está mais exposta à Covid-19. “É uma avalanche de coisas. O que dá para fazer, vamos tentando”, diz o agente.

Fábio reserva uma parte de seu tempo para a publicação de posts nas redes sociais, onde compartilha informações na página criada pela comissão de agentes comunitários de saúde e pela FCC, o Favelas Contra o Coronavírus, grupo apoiado por especialistas da Fiocruz. Também faz videoconferências com outros agentes de saúde e líderes comunitários para traçar estratégias de contenção da doença. Ele ainda procura se atualizar sobre como a pandemia avança em outras comunidades, como a favela da Rocinha, a maior do Brasil, com 70 mil habitantes, encravada na zona sul do Rio. Até a última segunda-feira, a Secretaria de Saúde confirmava apenas quatro casos na Rocinha, mas os agentes sociais de lá estão desesperados por kits de testes devido aos inúmeros moradores com sintomas da doença.

O trabalho de Fábio diante do computador não alcança uma região no miolo de Manguinhos, onde há pessoas sem acesso à internet e idosos que nem sequer sabem mexer no celular. Ali poucos têm conhecimento da dimensão da pandemia. Monteiro e os agentes traçaram um mapa dessas áreas para um motoqueiro percorrer, durante quatro horas por dia, com uma caixa de som na garupa, avisando do perigo da doença. A gravação leva informações sobre a prevenção à Covid-19, enquanto a moto entra por becos em que carros não passariam. Apesar de direcionada aos mais idosos, a mensagem procura chamar a atenção também dos mais jovens, com uma batida de funk nos intervalos: “Tu tá ligado no coronavírus? Deixa eu te passar a visão. Essa doença triste que afetou nosso mundão”.

Os agentes de saúde se preocupam, ainda, com os catadores de latinhas, ferro velho e papelão. Uma das principais ruas de Manguinhos tem duas caçambas das quais transbordam inúmeros sacos de lixo e podem ser um foco de transmissão do coronavírus, que sobrevive por alguns dias em embalagens. Monteiro fez um vídeo para orientar as famílias a separarem o lixo reciclável e entregarem num posto de coleta da Fiocruz. Ele sabe, porém, que é muito pouco para evitar que pessoas famintas remexam as caçambas.

O drama da pandemia muitas vezes atravessa a porta de casa dos envolvidos no combate à doença. Na semana passada, a mulher de Fábio, que é técnica de enfermagem na clínica da família de Manguinhos, voltou do trabalho aos prantos. Tinha acabado de receber a notícia de que morreu um paciente idoso no qual ela sempre fazia curativo. Ainda não se sabe a causa da morte. O pai dela, de 70 anos, diabético e deprimido pela morte recente da mulher, está no grupo de risco. Ele mora sozinho em cima do barzinho onde vende doces, alimentos e bebida. Mesmo com a pandemia, não fechou o negócio que lhe garante o sustento. Confia num frasco de álcool em gel, presente de amigos, para se prevenir da contaminação. Patrícia evita o contato direto, receosa de transmitir o vírus a ele.

Comércios iguais ao do sogro de Fábio, um misto de mercearia e bar, não fecharam as portas na favela de Manguinhos. Sem dinheiro para fazer compras grandes, a maioria dos moradores vai ao mercado quando ganha algum trocado, muitas vezes em serviços informais. Além disso, é difícil convencer os habituais frequentadores de bares de que o momento pede contenção e isolamento. Mais uma missão para Fábio, que abriu mais uma frente em seu trabalho, à qual deu o nome de “redução de danos para alcoólatras”. O agente orienta a turma a beber em casa – e, se isso não for possível, que pelo menos não divida o copo e não sente muito perto dos companheiros de boteco.

O conjunto de todas essas situações alimenta uma bomba relógio. “Minha perspectiva não é boa. Temo que a gente fique pior do que a Itália”, diz Monteiro. Ele prevê que os agentes comunitários serão cada vez mais requisitados pelos moradores, pois residem na favela e encontram pacientes nas esquinas. Segundo Monteiro, faltará pessoal para atender a demanda porque, nos últimos anos, as organizações sociais que administram clínicas da família demitiram 2,5 mil profissionais no Rio. “Há muitos agentes  com medo do coronavírus. Faltam equipamentos de proteção e máscaras”, afirma.

Outro temor latente na região é que, sem comida, muita gente comece a fazer saques em supermercados. “O que vai acontecer? A polícia vai matar quem está morrendo de fome”, afirma Fábio. Documentos obtidos por Crusoé mostram que a Polícia Militar já se mobiliza para conter possíveis saques no Rio. E áudios de WhatsApp revelam que há uma articulação nesse sentido – não de pessoas necessitadas, mas de criminosos.

Quando consegue se desligar um pouco da pandemia, durante a noite, Monteiro se dedica ao curso de engenharia ambiental em uma faculdade privada. Por causa da Covid-19, as aulas têm ocorrido pela internet. Ele sempre sofreu cobranças de colegas estudantes que não moram em favelas. “Dizem que nos fazemos de coitadinhos e de vítimas. Eu discordo. A gente está correndo atrás. Não esperamos pelo governo, mas ainda assim temos que cobrar a responsabilidade do estado.”

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Fábio, meu querido agente de saúde, só Deus, na Sua infinita misericórdia, poderá lhe dar o pago por tamanha dedicação! Que empatia, que coragem! Você é, de fato, um herói anônimo neste mundo tão cheio de frieza e covardia. Deus proteja você e toda a sua família! Confie em Deus! Ele não o desamparará!

  2. Admiravel esse agennte da saúde, Fábio. E assustadora a visão de mundo que ele oferece. Gostaria de saber como o Governo do Rio planejou atender efetivamente estas Comunidades.

  3. Grato por pessoas assim. Chamam atenção tb o eterno drama crônico da falta d saneamento, desurbanização e a pobreza, q seriam resolvidos ou abrandados somente por sucessivos governos liberais, com privatização e livre mercado

  4. Como se não bastasse todo tipo de condições desfavoráveis que o trabalho nessas comunidades exige, ainda tem o preconceito dos que torcem o nariz pq é preciso ter bom relacionamento com criminosos para adentrar nessas áreas dominadas

  5. Esses são os GDE heróis ,NÃO GANHAM 160000 mil ,como os parlamentares ,não tem 3 BILHÕES DE FUNDO ,Nem mordomias ,mas CUIDAM DA POPULAÇÃO ,QUE É PRIVADA DE ASSISTÊNCIA ,para que as EXCRESCÊNCIAS Tenham as mordomias e os altos salários

  6. Essa realidade terrível presente nas grandes comunidades de baixa renda das nossas cidades é fruto de políticas públicas errôneas e da profunda corrupção que assola o pais há décadas! Que o vírus sirva de lição para votarmos em políticos capazes, honestos e comprometidos com as necessidades mais urgentes de toda sociedade, nas áreas da Saúde, Educação, Saneamento e Transporte!

  7. Você é um verdadeiro herói dos nossos dias. Não posso deixar de agradecer-lhe por tudo que vem fazendo por sua gente, que é a nossa gente, embora esquecida e desassistida por nossas irresponsáveis autoridades, muito mais preocupadas em disputar palanques.

  8. Parabéns Fábio! São poucos, e infelizmente não me vejo entre eles, que tem a coragem de fazer um trabalho de risco tão alto, lidando com riscos à saúde e expostos à criminalidade.

  9. Triste realidade da comunidade, mas o guerreiro faz seu papel como pode e conforme sua situação. Verdadeiros heróis. PARABÉNS!

Mais notícias
Assine agora
TOPO