José Patrício/Crusoé

Cabral, o cientista

O ex-açougueiro do interior baiano foi estudar na Inglaterra e na Suíça e agora, em São Paulo, tenta desenvolver uma vacina contra o coronavírus
08.04.20

Desde que assumiu a coordenação da pesquisa para formular uma vacina contra a Covid-19, em 2 de março, o imunologista baiano Gustavo Cabral não tirou um único dia de descanso. Não tem horários para entrar e sair de seu laboratório, no 9º andar do Instituto do Coração, o Incor, em São Paulo. Ele tem trabalhado inclusive aos sábados e domingos. “A gente vai até onde a nossa cabeça consegue. Estamos levando isso no limite do que é humano”, diz. “Mesmo quando chego em casa, continuo recebendo artigos acadêmicos de outros pesquisadores pelo celular. A cabeça fica pilhada.”

Nos raros momentos livres, Cabral leva seus pais, ambos com mais de 60 anos, para passear em sua HRV pela Cidade Universitária da USP, na capital paulista. Como as faculdades estão com as aulas suspensas, a família pode fazer o que em dias normais provavelmente não faria: observar tranquilamente prédios, árvores e gramados do campus. Os três, contudo, nem chegam a descer do carro. Cabral tem tomado todo cuidado para proteger seus pais. “Minha vida é entre minha casa e o laboratório. Não vou para outros lugares”. Ao retornar do Incor, por segurança, Cabral coloca todas as roupas em um saco plástico, que é deixado para lavar. “Estamos rindo de tudo isso, para que as coisas fiquem pelo menos um pouco divertidas.”

Os pais do imunologista chegaram a São Paulo no início do ano para uma visita que não duraria muito tempo. Com a pandemia, porém, Cabral achou melhor não deixar que eles retornassem para o povoado de Creguenhem, na cidade de Tucano, a quatro horas de carro de Salvador. “Se eles voltarem para o sertão e ficarem sozinhos, será difícil conseguirem alguma assistência caso fiquem doentes.”

Cabral nasceu e cresceu em Creguenhem. Com oito anos de idade, ajudava o pai na roça e vendia frutas e geladinho na feira. Aos dezesseis, tinha um açougue na vizinha Euclides da Cunha. O estabelecimento não levava um nome na fachada. Era conhecido apenas como a “banca do Gustavo”. Era ele quem cortava e vendia as peças de carne. Até então, dividia o trabalho com os estudos. Aos 19 anos, foi preciso parar de estudar. Era preciso trabalhar mais para reforçar o caixa da família.

José Patrício/Crusoé

O jovem baiano que agora desenvolve uma vacina contra a doença que parou o planeta se formou com 21 anos. Inspirado nos professores da escola, ele decidiu tentar entrar numa faculdade. Foi o primeiro da família a cursar o ensino superior. Formou-se em biologia na Universidade do Estado da Bahia. “Eu queria ter um emprego. Não queria ser peão”, diz.

Cabral fez mestrado e doutorado no Brasil em imunologia e partiu para estudar cinco anos na Europa. Passou pela Universidade Oxford, na Inglaterra, e pela Universidade de Berna, na Suíça. Ao voltar ao país, tirou férias pela primeira vez na vida e, em seguida, iniciou uma pesquisa no Incor para desenvolver vacinas para a chicungunha e para infecções causadas pelo streptococcus.

Com o coronavírus causando milhares de mortes pelo mundo, ele foi convocado a redirecionar sua pesquisa. Uma equipe de dez pessoas, entre estudantes, professores e pesquisadores do Incor, foi formada. “Nosso laboratório do Incor é de ponta. Nossa estrutura não deve nada à de Oxford. O que nos deixa para trás no Brasil é que, por questões políticas, acabam-se cortando as bolsas de ensino de vez em quando. Aí a gente se acaba, porque os estudantes são mão de obra qualificada para realizar as pesquisas.”

O grupo do Incor trabalha em colaboração com a Fiocruz, em Minas Gerais, e o Instituto de Medicina Tropical, da USP. A equipe não usa material genético do vírus natural, mas partículas criadas em laboratório, para ativar o sistema imunológico dos seres humanos. O ambiente exige cuidados redobrados. O acesso ao laboratório é feito pelas impressões digitais. No seu interior, cientistas vestindo avental branco se revezam entre computadores, microscópios e outras máquinas. Todos usam luvas e máscaras cirúrgicas. Levam placas de vidro de um lado para o outro. O silêncio que domina o lugar só é entrecortado pelos breves apitos da parafernália que auxilia no trabalho. Há uma cafeteira do lado fora, mas Cabral nem sequer sabe ao certo onde ela fica. “Adoro café, mas até agora não tive nem tempo de ver onde a máquina fica.”

A meta do cientista baiano e de seus colegas é chegar a uma vacina segura e eficiente em dois anos. Há, porém, uma ambição ainda maior embutida no desafio: convencer o país de que é preciso acreditar nos seus próprios cientistas. “Precisamos entender que os cientistas têm muito a contribuir para o Brasil no longo prazo e precisam ser valorizados”, diz Cabral. “Meu objetivo não é apenas fazer uma vacina, mas seguir uma carreira científica de longo prazo. Quero ficar coroa, chegar aos 70 anos e continuar dando aula de imunologia no Brasil. Isso seria fantástico. É o que me faria sentir parte da história.”

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