Divulgação"Levantamos de manhã com a angústia não só dos mortos, mas também de todos os detalhes de uma morte contada pelos protagonistas"

União para sair do pesadelo

O testemunho dramático de um infectologista italiano que saiu da aposentadoria para o front do combate ao vírus
03.04.20

Médicos convivem com vírus. Na linha de frente, encaram um inimigo invisível para salvar vidas. Mas em uma pandemia, médicos também viram presas e podem sucumbir à doença que combatem. Antes de morrer, há três semanas, o clínico geral Marcello Natali, de 57 anos, relatou a um colega que estava sentindo a mesma aflição de seus pacientes no norte da Itália: “Não consigo mais respirar”. Natali atendia vítimas do novo coronavírus em Codogno, na Lombardia, o primeiro epicentro da crise na Europa. Sua angústia foi revelada pelo médico Irven Mussi, indignado com a situação vulnerável dos profissionais de saúde dentro dos hospitais – eles não dispunham mais de equipamentos básicos de trabalho. “Fomos enviados para a guerra sem nenhuma proteção”, queixou-se.

Natali teve uma morte solitária. Martírio igual ao dele foi testemunhado em larga escala pela médica Francesca Cortellaro, em Milão. Em um relato que rodou o mundo, ela contou que usava seu próprio celular para que pacientes terminais infectados dessem adeus aos familiares em chamadas de vídeo. A epidemia mobilizou – e depois paralisou – a Itália. Médicos do sul foram enviados às pressas para socorrer as emergências do norte. Com a suspensão das aulas nas renomadas universidades da região, uma leva de estudantes regressou ao sul. Muitos, sem saber, carregavam a moléstia consigo. As consequências já são conhecidas. A Itália lidera o ranking mundial de mortes em decorrência do coronavírus, com mais de 13 mil vítimas. Entre elas, ao menos 66 médicos.

Os números parecem os de uma guerra. Mas essa comparação é rechaçada pelo veterano Luigi Greco, para quem “o vírus não pode ser eliminado”. Aos 68 anos e um dos maiores especialistas italianos na área, o infectologista estava em casa, aposentado, quando foi recrutado há duas semanas para suprir a carência de médicos em Salerno, no sul do país, e estruturar um hospital para atender os pacientes com coronavírus. Com 20 dias de delay em relação ao início da crise no norte, Salerno vive há mais de um mês uma rígida quarentena, onde quem é flagrado na rua sem necessidade é multado e, se estiver infectado, é preso. Nesta entrevista a Crusoé, Greco classifica a Covid-19 como “a mais solitária das doenças” e diz que, apesar das inúmeras baixas médicas, não teme o front. “Não sou um bombeiro que tem medo de fogo”, diz. Na curva da propagação do vírus, a região do médico vive situação similar à do Brasil. E, até por isso, ele faz um alerta: “Parem agora que vocês ainda têm poucos casos”. “Todos estamos conscientes de estar em um barco que não deve afundar e para isso estamos integralmente comprometidos. A Covid fez um milagre. Estamos unidos em torno de um único desejo: sair deste pesadelo.” Eis os principais trechos.

Que situação encontrou no hospital de Salerno?
Em comparação com o norte, temos um atraso de 20 dias e nós ainda não temos os números trágicos de mortos e internados que eles têm lá. Mais de 90% dos nossos casos originam-se do norte. No sul da Itália, nós enviamos nossos filhos para as melhores universidades do norte. Após 7 de Março, quando todas as instituições entraram em quarentena, houve um retorno em massa de estudantes para o sul. Nos jovens, a doença se assemelha a uma gripe banal e no sul da Itália as famílias ainda estão muito unidas em suas casas, com estreitos laços intergeracionais. Estamos testemunhando uma expansão gradual do vírus entre os idosos.

Como tem sido sua rotina?
No meu hospital todos estão em pânico. Não só por causa das imagens trágicas do norte da Itália. Há um forte e permanente convite para ficar em casa, para dessocializar. As pessoas estão ficando loucas. Trabalhar nessas condições é estressante. Trabalho hospitalar nunca é uma rotina, especialmente nestes dias. Precisamos converter todas as unidades operacionais em centros de Covid. Antes tínhamos doze leitos para doenças infecciosas no hospital. Hoje, temos três andares exclusivamente destinados ao coronavírus.

Temos visto o drama italiano de pessoas que estão vendo parentes morrerem em casa, sem assistência, ou impedidas de se despedir no hospital.
Qualquer um que está hospitalizado não pode ver os familiares. O hospital é o lugar com o maior risco de contágio para os visitantes, mas, especialmente, para os profissionais de saúde e os pacientes em geral. Normalmente, a cura é lenta e você também pode ficar por mais de 20 dias no hospital. Aqueles que vão para a UTI estão com alto risco de vida, na solidão total. A Covid é a mais solitária das doenças. Você está sozinho mesmo quando está vivo. Eu penso no isolamento dos mais velhos. Na Itália, mais de 10 milhões têm mais de 70 anos de idade, e todos eles têm risco de morrer infectados.

Era possível evitar a pandemia?
A experiência italiana indica dois aspectos fundamentais do problema. Primeiro: não se deve concentrar todas as energias nos hospitais. O paciente que está internado representa o fracasso da prevenção no território. Segundo: precisamos de forças-tarefas capazes de isolar os infectados de forma a controlar todo o contato com pessoas infectadas, incluindo as assintomáticas.

DivulgaçãoDivulgação“Hoje nós choramos pelos nossos mortos, amanhã vamos sofrer a miséria de um pós-guerra”
Até agora, o coronavírus parece ter vitimado mais gente no norte da Itália, a região mais rica e com melhor infraestrutura, do que no sul. Para além da questão temporal, há explicação para isso?
Não sabemos o porquê. Milão é uma cidade cosmopolita e o fenômeno da Covid se espalhou rapidamente. O vírus é de RNA, uma característica genética muito frágil. A cada mil cópias, uma tem sequência diferente, o que pode criar mutantes com maior difusão e virulência. O que mais confunde os cientistas são os mistérios do vírus e a incapacidade de se fazer previsões. Ainda não sabemos o número de portadores assintomáticos. Calcula-se que para cada paciente com sintomas da doença existam pelo menos dez pessoas infectadas aparentemente saudáveis. Isso reduz qualquer estratégia de controle de difusão.

Há explicação para a mortalidade do coronavírus na Itália ser a mais alta do mundo?
Novamente, não sabemos. Você pode pensar que isso se deve à idade dos pacientes mortos (80% tem mais de 70 anos). Mas começamos a ver manifestações mais graves mesmo entre pessoas de 40, 50 anos de idade. Novamente nos perguntamos: é um vírus mutante?

Quais foram os erros e os acertos do governo italiano na gestão desta crise?
Mesmo com os casos chineses, não poderia se prever uma epidemia desta magnitude. Precisamos encontrar coragem de parar toda a economia de uma nação, e isso não tem sido fácil. Hoje nós choramos pelos nossos mortos, amanhã vamos sofrer a miséria de um pós-guerra, sem um Plano Marshall (programa de ajuda econômica dos EUA para a recuperação da Europa ocidental após a 2ª Guerra Mundial, em 1948). Não é hora de falar sobre erros ou acertos. Todos estamos conscientes de estar em um barco que não deve afundar e para isso estamos integralmente comprometidos. A Covid fez um milagre. Estamos unidos em torno de um único desejo: sair deste pesadelo.

O que o Brasil pode aprender com a Itália, considerando que estamos apenas no início da epidemia aqui?
Não conheço tanto o Brasil, mas sinto que temos muitas coisas em comum. É preciso prestar atenção ao território, isolar imediatamente os infectados e seguir aqueles que tenham tido contato com eles. Não deixem a infecção se propagar. Parem agora que vocês ainda têm poucos casos.

Acredita que o fator climático interfere na propagação do vírus?
Há ligações entre o clima e a propagação do vírus, mas os níveis de poluição do ar também são muito sugestivos. Todos nós temos visto as imagens de satélite da China pré e pós-viral. Tanto as variações climáticas quanto a poluição atmosférica são interferências do homem no equilíbrio da vida na Terra. Os vírus têm a experiência de três bilhões de anos. Nós, de alguns milênios. Em um cenário de guerra, somos derrotados no começo.

“O vírus não pode ser eliminado. Nós só podemos controlar sua disseminação”
Essa pandemia tem algum paralelo na história?
A história do homem na Terra é uma história de pandemias. Na minha vida,  experimentei muitas epidemias e pandemias: HIV (3 milhões de mortes), vários vírus influenza com epidemias sazonais, milhões de infecções e centenas de milhares de mortes, SARS etc. Muitos desses vírus vieram do mundo animal. O coronavírus, dos morcegos. Nós destruímos o equilíbrio territorial entre humanos e animais. Os animais expulsos dos seus reinos estão se vingando. Ultrapassamos a barreira entre as espécies. Mais uma vez, um forte sinal de que somos os arquitetos de nossas desgraças.

O sr. vê algum excesso nas medidas restritivas adotadas pelos governos, como o isolamento social e o fechamento de escolas e fronteiras?
Não havia alternativas.

O sr. acredita que há um cenário de pânico na sociedade?
Os meios de comunicação tornaram-se senhores das nossas mentes, das almas. Somos um saco de pancada atingido por golpes que nocauteiam todos nós. Levantamos de manhã com a angústia não só dos mortos, mas também de todos os detalhes de uma morte contada por protagonistas. Em nossas mentes, há caminhões militares que transportam os caixões para o cemitério. Estamos paralisados, um sentimento de asfixia com opressão. A sociedade se liquefaz. Diz: “Fique longe de mim”. Tudo é feito pelo telefone celular ou pelo computador.

O sr. tem 68 anos, está no grupo de risco e foi para a linha de frente, no hospital. Não teme ser mais uma vítima?
Nunca tive medo de ser infectado em mais de 40 anos de contato contínuo com pacientes infecciosos. Fico impressionado com esse pensamento de guerra universal contra o vírus. Nada mais falso. O vírus não pode ser eliminado. Nós só podemos controlar sua disseminação. No hospital, você lava as mãos e os dispositivos de proteção são adotados. Sei que na minha idade o risco é maior, mas também sei que não posso ser indiferente. Não sou um bombeiro que tem medo de fogo.

Qual é a melhor maneira de ser transparente quanto à gravidade do problema sem deixar a população em pânico?
As notícias falsas sobre o vírus atraíram um monstro escondido por toda parte: todo mundo está infectado não pelo vírus, mas pelo medo criado com as imagens dos contaminados e dos mortos. As pessoas andam de bicicleta, carro ou sozinhas com máscaras. Essa besteira nos leva a não ter essas máscaras nas enfermarias onde estamos em contato com a Covid. As estratégias de contenção são importantes. Isso significa: fiquem distantes uns dos outros, especialmente de quem tem sintomas de gripe.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Parabéns, doutor. Pena notar que muitos dos que leram sua entrevista interpretaram de modo errado. Difundem o pânico.São os que apostam no quanto pior melhor.

  2. o covid não consegue unir,os oportunistas por poder e dinheiro não param nunca. Não vejo mais JN q virou JNBC(jornal nacional Bolsonaro Corona)enquanto o povo segue aterrorizado por esse tipo de imprensa e aterrorizado com a sobrevivência. Fé em Deus, único que pode nos livrar disso tudo.

  3. Quem tem que parar são os vulneráveis. Quem precisa ser isolado são eles. A solidariedade é nossa. São essas medidas aquelas que podem ajudar ao máximo de pessoas possível. Não temos o clima da Itália e estamos agindo como se tivéssemos. Infelizmente temos um ministro da saúde cercados por matemáticos e computadores ao invés de médicos... O Isolamento total num país pobre como o Brasil, é para pessoas como eu ou vc que tem dinheiro para assinar a Crusoe... mas até quando poderemos manter isso?

    1. Cuidado VERÔNICA o COVID-19 VEM AÍ. Sai pra rua duma vez, pega o Covid e leva para todos os teus parentes. Ah! uma coisinha mais:só para os teus parentes viu.

    2. verônica quer sair?saia ninguém lhe Obriga a ficar em casa...vá ajudar nos postos de saúde e hospitais

    3. até parece que não leu a reportagem? ISOLAMENTO é a única saída...

    4. Os vulneráveis são possíveis vítimas dos demais, caso não houvesse quarentena para todos. É possível entender isso, a menos que vc não queira entender por algum outro motivo, dificilmente um motivo honesto.

    5. Endosso todas as suas palavras. Cada local (pais) tem suas pecuniaridades que precisam ser observadas. Cada um (pais), cada um.

  4. Eu estou com muita vontade de chorar neste momento. Resta-me, entretanto, a fé em Deus. Nesse Domingo de Ramos, abramos nossos corações para que Jesus ressuscite em nós. 🙏🙏

  5. Esse sim, é um herói.... Que tenhamos após essa crise, a consciência em mudar os rumos das sociedades e da forma escolhida para viver até hoje... Que as ações deixem o individualismo de lado e procurem sempre o bem coletivo.... Espero haver grandes mudanças, depois dessa guerra....

  6. Maravilhosa entrevista, onde o colega( sou médica) exprime , com a simplicidade necessária aos leigos, o drama dos profissionais da saúde e demais colaboradores, no front dessa guerra terrível! Q os governos reconsiderem as verbas destinada à esse setor e à educação de seus povos, para q nem tão cedo voltemos a ter uma pandemia dessa magnitude!

  7. Ele tem consciência de que há um preço alto ao se defender a vida. A humanidade sempre tratou de paga-lo. O pagamento, porém, pressupõe que se esteja vivo; mortos não pagam dívidas. Morrer, ademais, não constitui alternativa. A ênfase no isolamento físico parte de um epidemiologista experiente, que poderia estar gozando sua aposentadoria merecida. Ele enfatiza o perigo que representam as aglomerações, especialmente porque raros países, como a Coreia do Sul e a Alemanha, investiram em testes.

  8. O Brasil precisa aprender com esta pandemia que precisa valorizar muito as estruturas e profissionais da saúde assim como da área de segurança e bombeiros. Quando tudo está bem é uma festa e esquecemos completamente os alicerces de uma sociedade que na grande maioria passam despercebidos e muito menos reconhecidos. Temos cientistas tambem que trabalham em silencio e nem são lembrados. Triste país...

  9. Muito dramático, morrer só não conseguindo respirar, por asfixia. Quem já deu uma afogadinha sabe muito bem do desespero. Que Deus proteja nosso País e dê bom senso e sensibilidade as autoridades. O momento não é de brigar é de se unir.

  10. Tão triste que não vou nem compartilhar...tenho vários familiares da área da saúde...alguns estão se formando agora...um pesadelo real...em quarenta desde 10 de março...saí ontem para me vacinar...com luvas e máscara...vacinação drive thru...e depois fui comprar remédios...os funcionários protegidos mantendo distância de mais de 1 m...achei que estava segura...mas...não mais.

Mais notícias
Assine agora
TOPO