Walterson Rosa/FolhapressJoão de Deus logo após ser preso pela primeira vez: proximidade com poderosos

João de Deus e do poder

Como a relação íntima que mantinha com presidentes, ministros do Supremo, governadores e parlamentares ajudou João de Deus a construir um império místico que por quatro décadas silenciou seus crimes
03.04.20

A proximidade de João de Deus com o poder está cristalizada dentro de um gabinete do Supremo Tribunal Federal. Literalmente cristalizada: o ministro do STF Luís Roberto Barroso mantém, num canto da sala onde despacha, um cristal do tamanho de um bebê, que ganhou de presente do líder místico João Teixeira de Faria.

A amizade entre os dois nunca foi assunto sigiloso. “Eu o conheci por intermédio de um grande amigo, Carlos Ayres Britto, que o levou até minha casa numa ocasião em que eu estava doente. Foi quando nos tornamos amigos”, Barroso disse ao Diário da Manhã, de Goiânia, na festa de aniversário de 71 anos de João, em 2013. Barroso ainda afirmou que ia uma vez ao mês a Abadiânia, cidade a uma hora e meia de viagem de carro de Brasília. “Se o João me convida para seu aniversário, não poderia deixar de vir abraçá-lo pessoalmente”, disse o ministro da mais alta corte brasileira.

Barroso e Ayres Britto não carregavam sozinhos a fé no curandeiro de Abadiânia. Após centenas de mulheres virem a público acusar João Teixeira de Faria de estupro, o STF teve de revelar que era ainda mais próximo do autoproclamado milagreiro. Gilmar Mendes e Luiz Fux se negaram a julgar um pedido de soltura de Teixeira, preso há 16 meses. Ambos alegaram “motivo de foro íntimo”.

Após um ano investigando a história de João Teixeira de Faria para o livro “A Casa – A história da seita de João de Deus”, descobri que as ligações de João Teixeira de Faria com o poder eram antigas e profundas, mas mesmo assim inúmeras e pulverizadas.

A Casa de Dom Inácio de Loyola, centro ecumênico em que João fazia suas cirurgias sem assepsia e propagava sua seita – uma salada de frutas de crendices que não se encaixava em nenhuma religião – só conseguiu existir por causa do apoio de homens de poder.

Quando João chegou a Abadiânia, então uma cidade de nem dez mil habitantes no interior de Goiás, à beira da BR-060, que liga Brasília a Goiânia, foi a convite de homens de poder.

Ao pisar por lá pela primeira vez, no fim da década de 1970, ele foi recebido pelo então prefeito, Hamilton Pereira – anos depois, Pereira entraria para a folha de pagamentos de João Teixeira de Faria, como administrador dos seus negócios místicos. Os seguidores que o levaram até Abadiânia também ocupavam cargos públicos: Domary José Jacinto e Braz Gontijo haviam sido prefeitos da cidade e Decil de Sá Abreu fora indicado pelo governo do estado de Goiás para ser prefeito biônico de Anápolis, onde João morou durante a maior parte de sua vida – Abadiânia era só o centro da sua empresa esotérica, nunca foi sua casa.

Marcelo Camargo/Agência BrasilMarcelo Camargo/Agência BrasilA “casa” do líder espiritual em Abadiânia era frequentada por políticos e juízes
Depois de ter sido moralmente condenado pelo padre Antonio Rocha e expulso do centro de Abadiânia, na virada da década de 1980, João de Deus foi relegado a prestar seus atendimentos numa chácara conhecida como Pau Torto. Do outro lado da rodovia, na zona rural do município, o lugar era abandonado: uma fazenda erma no meio do cerrado, em que as poucas árvores que nasciam eram retorcidas por causa do solo pobre e da falta d’água – vem daí o nome Pau Torto.

João conseguiu a façanha de levar energia elétrica para o meio do nada, em poucos meses. Com a ajuda de amigos do legislativo. Assim que a Casa foi fundada, o próprio Teixeira afirmava que acionou o deputado Siqueira Campos, que era pecuarista e homem de fé nas entidades. Campos, que conheceu João em Goiânia, havia sido membro da Comissão Especial do Desenvolvimento do Centro Oeste até 1975, e ainda tinha influência nas verbas destinadas àquele miolo de Brasil. No bolo de obras que seriam feitas no interior de Goiás, ele conseguiu incluir a instalação de energia elétrica naquela chácara no Pau Torto. Menos de um ano após ser fundada no breu e na secura, fez-se a luz na Casa — mais por tráfico de influência do que por milagre.

Corta para 35 anos depois. João de Deus já era um dos líderes místicos mais famosos do mundo. A apresentadora americana Oprah havia visitado a casa onde ele raspava a córnea de doentes com facas de cozinha. A classe artística já declarava seu amor por João nas redes sociais. E um evento serviu para mostrar o poder terreno do homem místico.

No casamento do cardiologista Roberto Kalil, em maio de 2015, João Teixeira tinha o WhatsApp da maioria dos convidados. A então presidente da República Dilma Rousseff cumprimentou João de Deus com um aceno de cabeça, do alto do altar. O líder místico trocou abraços com o então presidente do Senado, Renan Calheiros; o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha; o senador José Serra; o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin; e o então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. “Já curei muitos que estão aqui hoje”, João repetia em voz alta.

João de Deus havia chegado aonde chegou porque era vírus que sobrevivia a mudanças climáticas na política. Tinha seguidores nos três poderes. No começo da sua carreira de curador, andava com uma pasta de couro debaixo do braço, recheada de cartas de recomendação de parlamentares, prefeitos e juízes, para o caso de ser preso por exercício ilegal de medicina ou charlatanismo, como aconteceu meia dúzia de vezes.

As mãos cheias de anéis afagavam tanto a esquerda quanto a direita. Em 2012, ele realizou um milagre: fez um frango voar – já morto e ensopado com pequi. O líder místico mandou uma marmita do prato típico goiano, de jatinho, para o Hospital Sírio-Libanês, onde Lula estava internado, tratando de um câncer.

Divulgação/Dilma RousseffDivulgação/Dilma RousseffLula: galinhada com pequi de presente, por via aérea
Em maio de 2005, o tucano Marconi Perillo, então governador de Goiás, chorou na frente de João e de uma multidão. “É muita emoção. É muita emoção”, disse Perillo, enquanto inaugurava a Casa da Sopa, um centro comunitário onde João e seus seguidores distribuíam comida, roupas e material escolar para abadianenses pobres. O então governador Perillo estava comovido porque no momento da inauguração se descortinou uma placa de metal em que se lia “Casa da Sopa Dona Maria Pires Perillo”, nome de uma dona de casa de Palmeiras de Goiás cujo maior feito foi ter criado um político local. Era a finada mãe de Marconi Perillo – daí a presença do filho emérito na inauguração.

No entanto, se tinha acesso para trafegar entre os três poderes na esfera federal ou na estadual, João Faria de Teixeira quase não tinha força na política municipal de Abadiânia.

O apoio financeiro da Casa a candidatos era raro e ralo. João Teixeira de Faria, como pessoa física, doou 4 mil reais para uma campanha a prefeito, em 2004, conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral. Mesmo com o apoio financeiro explícito, o candidato Wilmar Arantes, advogado da Casa, perdeu. Nos dados do TSE, não há doação de campanha de João nas eleições de 2008, 2012 e 2016 a nenhum dos candidatos.

Se a bênção de João era boa para seus funcionários e turistas, ela podia ser uma maldição no mundo da política. Wilmar Arantes teve o apoio do líder místico por quatro vezes. A única ocasião em que foi eleito, em 2012, foi quando João declarou voto em seu rival, Ronivan Peixoto de Morais Júnior. Arantes ganhou com uma diferença de 56 votos. Morais Júnior, o candidato da Casa, havia recebido 248 mil reais de doações legais. Arantes, que pela primeira vez concorria sem o apoio de João de Deus, angariou 56 mil reais – e ganhou mesmo assim.

“Eu concorri contra ele e ganhei”, diz o prefeito em 2020, José Diniz, do PSD. Diniz não foi o único candidato de oposição à Casa que venceu. As eleições de 2012 são um bom exemplo do limite do poder de João. Arantes, que voltou a ser o candidato da Casa, teve 20% dos votos. Ficou em terceiro.

Mas, mesmo sem músculo político para eleger os candidatos de sua escolha, João de Deus sempre foi cabo eleitoral no Legislativo local. Éder Martins, vereador em Abadiânia pelo PTB, é uma das pessoas que estavam dentro da delegacia em 1996, quando dois suspeitos de furto foram levados de dentro da Casa e afirmam terem sido torturados na delegacia. Na época, ele era escrivão.

“Nenhum político quer o João colado. Eles queriam que o João fizesse doação para campanha. Mas não queriam ele junto, porque ele queria mandar, queria fazer do jeito dele”, explica Paulo Paulada, que foi secretário municipal de Administração e de Esporte em Abadiânia, antes de ser braço direito de João por quatro anos. O poder de João Teixeira de Faria era circunscrito a seus fiéis, e muitos deles não votavam em Abadiânia. Havia também o medo de indispor a Casa com os novos governantes. “Ele sempre foi um bundão, ele tinha medo de tudo”, diz Paulada.

João Teixeira de Faria afirma não ter cometido nenhum dos crimes sexuais de que é acusado por ao menos 351 mulheres. Em dezembro de 2019, foi condenado a 19 anos e quatro meses de prisão, após o julgamento da primeira denúncia coletiva feita contra ele por violação mediante fraude, estupro e outras acusações. Em janeiro de 2020, foi condenado a mais 40 anos em regime fechado por outros estupros. Há ainda onze outros processos por crimes sexuais, além de investigações de desvios financeiros, extorsão e formação de quadrilha, entre outros delitos. No ano em que já ficou preso, não há registro de nenhuma visita de político ou de ministros no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. Nesta semana, em razão da pandemia de coronavírus, João de Deus conseguiu uma ordem para deixar a cadeia. Está em prisão domiciliar. A decisão foi de uma juíza de Abadiânia.

O livro “A Casa - A História da Seita de João de Deus” será lançado no próximo dia 6 e está em pré-venda no site da editora Todavia.

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