LeandroNarloch

Cotovelistas e cloroquinistas

03.04.20

Leitor, antes das polêmicas envolvendo o presidente, o vírus, a imprensa, preciso falar sobre “O cotovelo que não foi mordido”.

O conto é de Sigismund Krzyzanowski, um russo estranho que viveu sob Stálin e foi pouquíssimo publicado durante a vida. Seus textos eram lidos em reuniões privadas e secretas.

A história é a seguinte. Uma revista semanal de política, ao pesquisar os desejos e preferências de seus assinantes, descobre um leitor com apenas um objetivo: morder o próprio cotovelo. O repórter enviado ao endereço de registro constata que o leitor falava sério. Encontra no casebre apenas uma mesa, uma cadeira e um homem alheio ao mundo tentando desesperadamente morder o próprio cotovelo.

O caso inspirou um artigo na edição daquela semana. Em tom de gozação, o texto criticava o homem excêntrico que, numa época lúcida e realista, dedicava a vida a sonhos fanáticos e irrealizáveis.

A revista adversária resolveu polemizar. Retratou o homem que queria morder o próprio cotovelo como um gênio incompreendido que utilizava o desafio da mordida como uma metáfora para alcançar a transcendência.

Seguiram-se réplicas e tréplicas, em que “o fanático do cotovelo era transformado ora num cretino, ora num gênio, e era proposto como candidato a um leito do manicômio ou à quadragésima cadeira da Academia”. Logo se formaram dois grupos adversários: os cotovelistas e anticotovelistas.

Pois bem, é essa a situação em que nos encontramos nesta quarentena. Politizamos não o cotovelo, mas o coronavírus. Opiniões sobre a pandemia ganharam conotação política.

Vejam o caso da cloroquina, o remédio para malária que é promessa para acabar com a crise. Como Trump e Bolsonaro apostam na cloroquina, quem se opõe aos dois presidentes prefere desconfiar do remédio e mostrar seu perigo. O Twitter chegou a apagar a mensagem de Bolsonaro sobre a cloroquina (mas não fez a mesma coisa com as mensagens de Trump ou do New York Times com conteúdo similar).

Já os defensores de Trump e Bolsonaro estão tão obcecados com a substância quanto Linus Pauling com a vitamina C. Pauling morreu tentando provar que a vitamina C tinha o poder de curar câncer, desprezando por anos as diversas conclusões desfavoráveis — como fazem hoje alguns cloroquinistas.

A politização também contaminou o debate sobre a rigidez da quarentena. Por aqui, vira bolsonarista quem falar uma obviedade do tipo “procure ficar em casa, mas se você estiver com criança passando fome tem o direito de sair para trabalhar”.

Ao contrário do que disse boa parte da imprensa, Bolsonaro não tirou do contexto a fala do diretor-geral da OMS ao citá-lo no pronunciamento desta semana. Tedros Adhanom foi preciso: os governos de países pobres devem ter cuidado ao proibir que famílias famintas trabalhem. Ex-ministro na Etiópia, o diretor da OMS certamente não espera que países da África criem do nada um estado de assistência social. Ocorre que lá fora a discussão não está tão politizada quanto no Brasil: o diretor não tinha se dado conta das consequências políticas de sua declaração.

A culpa por essa politização é do próprio Bolsonaro. No pronunciamento anterior, do dia 24 de março, o presidente arranjou briga com governadores e com a imprensa em vez de fundamentar com dados e argumentos sua defesa a limites da quarentena. Acabou dando força ao quarentinismo-horizontalista, ao anticloroquinismo e talvez a diversas nuances do cotovelismo nacional.

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