MarioSabino

A porta do bem e a porta do mal

03.04.20

Há duas portas nesta crise sem saída aparente. A porta do bem e a porta do mal.

A porta do bem, que todos querem evitar, é a dos hospitais. Ela dá acesso ao trabalho exaustivo de quem seguiu a mais nobre das profissões, a da cura. Ao redor do mundo, enfermeiros e médicos dobram turnos em Unidades de Terapia Intensiva, sem levar em conta a condição social de quem está ali, arfante, infectado pelo vírus maldito. Nas sacadas e janelas, pessoas confinadas os aplaudem, mas eles estão ocupados demais para ouvir as palmas neste momento — e também preocupados em não morrer no momento errado, igualmente contagiados, expostos que estão ao perigo invisível, muitos sem proteção adequada, como máscaras e roupas protetivas, artigos em falta tanto em países ricos como em pobres.

A mais nobre das profissões é também uma das mais ridicularizadas na história da literatura. É como se fosse composta integralmente por charlatães gananciosos. “Eles curam as doenças que inventam.” É uma frase da peça O Rinoceronte, de Ionesco, que resume a visão literária da medicina. O falso médico de Molière, o personagem Sganarelle, tinha por base o Dottore da commedia dell’arte italiana, mas também doutores de verdade da corte francesa. Faz rir até hoje. O próprio Molière era o seu melhor intérprete. Ainda há, obviamente, Sganarelles ridículos em sua incompetência, cupidez e vaidade (entre os vaidosos, muitos têm assessores de imprensa para plantar notinhas laudatórias em jornais). Mas essa parte ruim não pode ser tomada pelo todo.

Sou filho de médico e irmão de médico. Há uma profusão de médicos na minha família, de ambos os lados. Entre os distantes — não no parentesco –, está a doutora Ester Sabino, minha prima, que comanda a equipe que sequenciou o genoma do coronavírus que aportou no Brasil. É filha de médicos e irmã de médico. Ainda era Esterzinha quando a encontrei pela última vez, há meio século. Eu a revi por fotografia, há algumas semanas, quando ela foi notícia nos jornais e na televisão. Bravo, Esterzinha.

Com quase 60 anos, nos momentos mais difíceis, ainda sinto a mão do meu pai tomando o pulso deste menino-pai-do-homem então assustado com sintomas. O gesto, por si só, acalmava-me. Um pai que era mais pai quando era médico. O meu irmão, por sua vez, ajudou milhares de bebês a vir a este mundo, mas ele próprio não tem filhos. Não quis transmitir a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. Sou irmão de Brás Cubas. Convocado para servir no front contra a Covid-19, acabou na retaguarda por ser hipertenso. É um privilégio ter familiares médicos, mas é igualmente afortunado quem pode contar com um médico de família neste trágico segmento histórico. Ainda assim, em que pese a proletarização da classe promovida pelos planos de saúde, a maioria esmagadora dos médicos faz do juramento de Hipócrates um exercício cotidiano de abnegação, como se vê em meio à pandemia.

A porta do mal, que ninguém consegue evitar, está sendo aberta um pouco a cada dia. A primeira visão que a sua abertura proporcionou foi a de gente depenando supermercados e farmácias para fazer estoques de alimentos e remédios que começaram a faltar por causa da correria explicável apenas pelo egoísmo. Mas esse não é o aspecto mais feio do clima de salve-se quem puder. O aspecto mais feio até o momento está no roubo de máscaras perpetrados por países.

Na semana passada, um avião de carga proveniente da China, com 650 mil máscaras destinadas à Itália flagelada pela Covid-19, fez uma escala em Praga, capital da República Tcheca — e as máscaras foram confiscadas por autoridades e distribuídas em cidades do país. Foram roubadas por uma nação da União Europeia de outra nação da mesma União Europeia. A Desunião Europeia. Não é fato isolado. A mesma China que escondeu inicialmente a gravidade do contágio na província de Hubei, onde fica a cidade de Wuhan, berço da pandemia, agora faz leilão com o comércio de máscaras. Governadores de regiões francesas, que encomendaram milhões delas, acusam os chineses de vendê-las a americanos na hora de serem embarcadas nos aviões. Na pista do aeroporto, os americanos pagam um preço três vezes maior e em dinheiro vivo. Sim, na pista do aeroporto.

O Brasil também está sendo afetado neste clima de salve-se quem puder mundial. O ministro Luiz Henrique Mandetta disse que compras de máscaras feitas pelos Estados Unidos na China cancelaram entregas já contratadas pelo Ministério da Saúde brasileiro. “Hoje (nesta terça-feira), os Estados Unidos mandaram 23 aviões cargueiros dos maiores para a China, para levar o material que eles adquiriram. As nossas compras, que tínhamos expectativa de concretizar para poder fazer o abastecimento, muitas caíram”, afirmou o ministro. Quem paga mais — e é mais rápido — leva antes. Da China, só o vírus veio de graça.

Muitas das máscaras que saem pela porta do mal entram pela porta do bem, para proteger médicos e enfermeiros dos países que simplesmente as roubam ou as interceptam com mais dinheiro. O vírus criou um corredor entre essas portas. E, enquanto nações desenvolvidas descobrem-se incapazes de fabricar a tempo máscaras e respiradores em massa, depois de terem entregue à China as indústrias de quase tudo, fica nas mãos de médicos e enfermeiros a decisão de quem vai viver e quem vai morrer, na falta de acessórios e equipamentos hospitalares básicos. Os anjos da vida são também os da morte. Mas a sua porta sempre será a do bem.

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