The White House/Shealah CraigheadDonald Trump e navio-hospital em Nova York: número de casos nos EUA é maior porque eles fazem mais testes

A nossa curva e a dos outros

Noves fora a subnotificação, o que a propagação da Covid-19 no Brasil nos diz se comparada com a expansão da doença nos demais países
03.04.20

Em 18 de março, o Brasil registrou três mortes por coronavírus no mesmo dia. Descontado o aparentemente gigantesco número de casos não notificados, a data pode ser usada como uma espécie de “marco zero” para acompanhar como a epidemia evoluiu no país desde então, olhando o que aconteceu com outras nações que enfrentaram antes as agruras da Covid-19.

Quinze dias depois dessa data, o Brasil tem contabilizado 60 novas mortes por dia. É uma curva menos acentuada do que a da China, que teve 86 óbitos neste mesmo momento (considerando o “marco zero” chinês como o dia 22 de janeiro, com 17 mortes). Nesse ponto, o país asiático já tinha cancelado voos e trens já haviam sido proibidos de entrar e sair de Wuhan, o berço da epidemia. O governo local também já havia suspendido a circulação de ônibus, barcos e metrôs dentro da cidade.

O vírus estava alastrado pela região. A província de Hubei, onde fica Wuhan, registrou 14 mil novos casos de infectados em uma semana – o Brasil, como comparação, ainda não chegou a acumular 10 mil casos no total.

À primeira vista, a vantagem comparativa do Brasil tem a ver com a decisão de restringir logo cedo a circulação de pessoas para refrear a propagação do vírus, como o cancelamento de aulas — uma boa parte do país começou a adotar essas medidas há duas semanas. Apenas três unidades da federação ainda não fecharam shoppings e o comércio de rua.

O número de infectados, porém, é um indicador capenga. O dado varia de acordo com a disponibilidade de testes rápidos. Se não há kits para os exames na praça, o número de casos é menor. Na China, dezesseis hospitais de campanha, erguidos entre o final de janeiro e o início de fevereiro, faziam testes em massa na população. Desde o início de março, o número de casos estancou no país. A explicação? A China mandou parar com os testes.

Chen Sihan/XinhuaChen Sihan/XinhuaNa China, redução dos testes diminuiu número de infectados
No Brasil, os testes na rede pública demoram cerca de dez dias para ficar prontos. No estado de São Paulo, que concentra quase a metade dos casos nacionais, há mais de 10 mil na fila do Instituto Adolfo Lutz, esperando o resultado. Entre 30 e 40 pessoas são enterradas diariamente nos cemitérios da capital paulista com suspeita de coronavírus. Nos boletins de óbito, os médicos dizem que aguardam os resultados dos exames.

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ordenou no final de março que todos os casos suspeitos deveriam ser testados, mas a ordem está longe de ser cumprida. Um estudo da Escola de Londres de Higiene e Medicina Tropical concluiu que apenas um de cada dez casos sintomáticos no Brasil é detectado. “Neste momento não temos uma ideia clara de quantos casos temos, devido ao represamento de testes nos grandes centros. Isso faz com que a curva de casos suba mais lentamente”, diz o físico Roberto Kraenkel, da Universidade Estadual de São Paulo, a Unesp, e membro do Observatório Covid-19 BR.

A influência que a disponibilidade de testes exerce no total de casos registrados pode ser constatada na explosão da Covid-19 nos Estados Unidos. No momento em que o país atravessava a fase que o Brasil passa hoje – quinze dias após ter registrado três mortes em um mesmo dia, portanto –, o país contava cerca de 40 óbitos por dia. É menos do que o índice atual do Brasil. O número de infectados, contudo, já era bem maior: 24 mil. A diferença, nesse caso, também pode estar relacionada aos testes: há quinze dias os Estados Unidos aprovaram a aplicação dos testes em massa e eliminaram todas as restrições para que isso acontecesse. O país atualmente é o campeão em número de infectados: 216 mil, quase a soma dos casos da Espanha e da Itália.

“Há uma falsa impressão de que a doença é mais grave nos Estados Unidos pelo fato de o número de infectados ser maior. Isso só está acontecendo porque os americanos vão testar mais gente do que em qualquer lugar do mundo”, diz o médico Marcus Dias, estudioso de saúde pública, mestre em economia e especialista em econometria.

A Itália é o país com mais mortes registradas até agora em todo o planeta. São mais de 13 mil. Quando estava numa fase similar à do Brasil hoje, novamente levando em conta como “marco zero” o dia em que se registraram três mortes pelo vírus, o país contabilizava cerca de 200 óbitos diários — três vezes mais que atual número brasileiro.

ReproduçãoReproduçãoHospital na Itália: serviço funerário sobrecarregado
O governo italiano foi moroso em tomar medidas para conter o avanço da doença. Por causa dessa lentidão e da população mais velha, os hospitais rapidamente ficaram superlotados e idosos com sintomas foram orientados a voltar outro dia. Quando alguém morria em casa, apenas o serviço funerário, com agentes vestindo roupas e equipamentos especiais, estava autorizado a recolher os corpos. Em alguns casos, a retirada dos corpos em caixões especiais demorava mais do que 24 horas.

Na semana seguinte, os italianos começaram a receber a ajuda da China, que enviou médicos e equipamentos. O vice-presidente da Cruz Vermelha chinesa, Sun Shuopeng, caminhou por Milão, a capital da Lombardia, e fez um diagnóstico chocante. “Aqui em Milão, a área mais atingida pela Covid-19, não há um bloqueio muito rigoroso. O transporte público ainda está funcionando e as pessoas continuam se movimentando. As pessoas ainda estão fazendo jantares e festas em hotéis e não estão usando máscaras”, disse Shuopeng.

A Espanha, em momento equivalente ao atual do Brasil, teve 280 mortes em um dia. Os hospitais estavam colapsados e só então os governantes tiveram a ideia de montar um hospital temporário em um pavilhão de feiras de Madri, com 5,5 mil leitos. Já não havia máscaras e luvas para os profissionais de saúde. O primeiro-ministro, Pedro Sánchez, determinou o confinamento da população uma semana antes. Ele demorou um pouco mais que os estados brasileiros. Os espanhóis então foram orientados a só sair de casa para comprar alimentos, remédios e ir a hospitais.

Friamente, os números podem indicar que a situação brasileira é melhor do que a dos demais países atingidos impiedosamente pela pandemia. Só que a boa notícia pode ser apenas uma miragem – e isso só será possível descobrir com a ampliação do número de testes por aqui. Nesta quinta-feira, aliás, médicos que se reuniram com Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto explicaram a ele que só a aplicação de testes em massa poderá fazer com que o país encurte com segurança os prazos do isolamento social – assim seria possível mapear com mais segurança os riscos de propagação e estabelecer medidas de contenção mais objetivas.

Ainda longe do ritmo ideal, a testagem no país deve se ampliar sensivelmente nos próximos dias, com a chegada de milhões de novos kits. Isso certamente fará com que a curva brasileira se acentue. Mas, ainda que o número de infectados se mostre muito maior do que o que conhecemos hoje, ainda há outro indicador que pode fazer com que vejamos água no deserto: se não estivermos subnotificando também o número de óbitos, pode ser que a tragédia por aqui não evolua no mesmo ritmo dos demais países. Nesta quinta, o mundo atingiu a marca de 1 milhão de pessoas diagnosticadas com a doença, com mais de 50 mil mortes.

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