A nossa curva e a dos outros
Em 18 de março, o Brasil registrou três mortes por coronavírus no mesmo dia. Descontado o aparentemente gigantesco número de casos não notificados, a data pode ser usada como uma espécie de “marco zero” para acompanhar como a epidemia evoluiu no país desde então, olhando o que aconteceu com outras nações que enfrentaram antes as agruras da Covid-19.
Quinze dias depois dessa data, o Brasil tem contabilizado 60 novas mortes por dia. É uma curva menos acentuada do que a da China, que teve 86 óbitos neste mesmo momento (considerando o “marco zero” chinês como o dia 22 de janeiro, com 17 mortes). Nesse ponto, o país asiático já tinha cancelado voos e trens já haviam sido proibidos de entrar e sair de Wuhan, o berço da epidemia. O governo local também já havia suspendido a circulação de ônibus, barcos e metrôs dentro da cidade.
O vírus estava alastrado pela região. A província de Hubei, onde fica Wuhan, registrou 14 mil novos casos de infectados em uma semana – o Brasil, como comparação, ainda não chegou a acumular 10 mil casos no total.
À primeira vista, a vantagem comparativa do Brasil tem a ver com a decisão de restringir logo cedo a circulação de pessoas para refrear a propagação do vírus, como o cancelamento de aulas — uma boa parte do país começou a adotar essas medidas há duas semanas. Apenas três unidades da federação ainda não fecharam shoppings e o comércio de rua.
O número de infectados, porém, é um indicador capenga. O dado varia de acordo com a disponibilidade de testes rápidos. Se não há kits para os exames na praça, o número de casos é menor. Na China, dezesseis hospitais de campanha, erguidos entre o final de janeiro e o início de fevereiro, faziam testes em massa na população. Desde o início de março, o número de casos estancou no país. A explicação? A China mandou parar com os testes.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ordenou no final de março que todos os casos suspeitos deveriam ser testados, mas a ordem está longe de ser cumprida. Um estudo da Escola de Londres de Higiene e Medicina Tropical concluiu que apenas um de cada dez casos sintomáticos no Brasil é detectado. “Neste momento não temos uma ideia clara de quantos casos temos, devido ao represamento de testes nos grandes centros. Isso faz com que a curva de casos suba mais lentamente”, diz o físico Roberto Kraenkel, da Universidade Estadual de São Paulo, a Unesp, e membro do Observatório Covid-19 BR.
A influência que a disponibilidade de testes exerce no total de casos registrados pode ser constatada na explosão da Covid-19 nos Estados Unidos. No momento em que o país atravessava a fase que o Brasil passa hoje – quinze dias após ter registrado três mortes em um mesmo dia, portanto –, o país contava cerca de 40 óbitos por dia. É menos do que o índice atual do Brasil. O número de infectados, contudo, já era bem maior: 24 mil. A diferença, nesse caso, também pode estar relacionada aos testes: há quinze dias os Estados Unidos aprovaram a aplicação dos testes em massa e eliminaram todas as restrições para que isso acontecesse. O país atualmente é o campeão em número de infectados: 216 mil, quase a soma dos casos da Espanha e da Itália.
“Há uma falsa impressão de que a doença é mais grave nos Estados Unidos pelo fato de o número de infectados ser maior. Isso só está acontecendo porque os americanos vão testar mais gente do que em qualquer lugar do mundo”, diz o médico Marcus Dias, estudioso de saúde pública, mestre em economia e especialista em econometria.
A Itália é o país com mais mortes registradas até agora em todo o planeta. São mais de 13 mil. Quando estava numa fase similar à do Brasil hoje, novamente levando em conta como “marco zero” o dia em que se registraram três mortes pelo vírus, o país contabilizava cerca de 200 óbitos diários — três vezes mais que atual número brasileiro.
Na semana seguinte, os italianos começaram a receber a ajuda da China, que enviou médicos e equipamentos. O vice-presidente da Cruz Vermelha chinesa, Sun Shuopeng, caminhou por Milão, a capital da Lombardia, e fez um diagnóstico chocante. “Aqui em Milão, a área mais atingida pela Covid-19, não há um bloqueio muito rigoroso. O transporte público ainda está funcionando e as pessoas continuam se movimentando. As pessoas ainda estão fazendo jantares e festas em hotéis e não estão usando máscaras”, disse Shuopeng.
A Espanha, em momento equivalente ao atual do Brasil, teve 280 mortes em um dia. Os hospitais estavam colapsados e só então os governantes tiveram a ideia de montar um hospital temporário em um pavilhão de feiras de Madri, com 5,5 mil leitos. Já não havia máscaras e luvas para os profissionais de saúde. O primeiro-ministro, Pedro Sánchez, determinou o confinamento da população uma semana antes. Ele demorou um pouco mais que os estados brasileiros. Os espanhóis então foram orientados a só sair de casa para comprar alimentos, remédios e ir a hospitais.
Friamente, os números podem indicar que a situação brasileira é melhor do que a dos demais países atingidos impiedosamente pela pandemia. Só que a boa notícia pode ser apenas uma miragem – e isso só será possível descobrir com a ampliação do número de testes por aqui. Nesta quinta-feira, aliás, médicos que se reuniram com Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto explicaram a ele que só a aplicação de testes em massa poderá fazer com que o país encurte com segurança os prazos do isolamento social – assim seria possível mapear com mais segurança os riscos de propagação e estabelecer medidas de contenção mais objetivas.
Ainda longe do ritmo ideal, a testagem no país deve se ampliar sensivelmente nos próximos dias, com a chegada de milhões de novos kits. Isso certamente fará com que a curva brasileira se acentue. Mas, ainda que o número de infectados se mostre muito maior do que o que conhecemos hoje, ainda há outro indicador que pode fazer com que vejamos água no deserto: se não estivermos subnotificando também o número de óbitos, pode ser que a tragédia por aqui não evolua no mesmo ritmo dos demais países. Nesta quinta, o mundo atingiu a marca de 1 milhão de pessoas diagnosticadas com a doença, com mais de 50 mil mortes.
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