MarioSabino

O Doutor Maluco da cloroquina

27.03.20

Viramos todos infectologistas em meio a esta pandemia. É natural. Se um meteoro gigante estivesse para chocar-se contra a Terra, teríamos nos tornado astrônomos. O dado imprevisível é que os infectologistas de verdade estão desorientados em relação ao novo coronavírus. Ele pertence a uma classe conhecida e, no entanto, o seu comportamento se mostra mais errático do que os dos seus assemelhados igualmente microscópicos. Mata quando era esperado matar e também quando não era esperado fazê-lo. É um vírus com alto grau de customização. Age não ao gosto do freguês, porque não há de se ter gosto para isso, mas de acordo com o histórico de saúde individual — e leva muita gente velha ou jovem para o hospital ao mesmo tempo. Ter só uma gripezinha ou um resfriadinho por causa dele ou parar na UTI com um quadro de infecção respiratória grave não garantem imunidade futura permanente, até onde se sabe. Há quem diga que a proteção proporcionada pelos anticorpos duraria de um a dois anos, no máximo. Se for mutável como o da gripe, a vacina salvadora terá de ser aplicada a cada ano em adultos e talvez crianças. Sou infectologista como você.

Enquanto não há vacina ou antiviral específico — os mais otimistas dizem que a vacina virá em 2021 e o antiviral, no segundo semestre deste ano com jeito de século das trevas —, os médicos vão tentando salvar vítimas de Covid-19 brava com drogas já existentes. A mais vistosa é ela, a cloroquina, nome de guerra também da sua prima, a hidroxicloroquina. Não vou discorrer sobre as moléculas de ambas, visto que o meu conhecimento invejável a respeito da química dos remédios é, provavelmente, tão vasto quanto o seu (já nos basta a formação rápida em infectologia). A minha omissão também permitirá que eu chame ambas de cloroquina.

Eu pensava que a cloroquina — prescrita originalmente contra a malária, o lúpus e a artrite reumatoide — havia começado a ser usada na França em pacientes já praticamente desenganados por causa de Covid-19 severa. Fui informado de que não, o medicamento já havia sido utilizado na China. De qualquer forma, a cloroquina que mereceu publicidade de Donald Trump e foi parar no armário de remédios de tantos brasileiros ganhou fama graças a um médico e microbiologista francês chamado Didier Raoult, que exerce as suas artes curativas em Marselha, no sul da França. O dado geográfico é importante, porque se esperava que Marselha produzisse apenas sabão, a sua especialidade. Já seria uma grande contribuição para o combate ao novo coronavírus. Mas eis que esta Nápoles gaulesa também dá a sua libra de carne na forma de tratamento com cloroquina. E por meio de um personagem tão desafiador como a Marselha que, na sua exuberância mediterrânea, causa suspeitas em Paris.

Didier Raoult foi objeto de uma reportagem do jornal Le Monde — à exceção dos seus correspondentes na América Latina, ainda é um bom jornal. Fiquei espantado com a fotografia do sujeito que ilustra a matéria, adepto que sou da recomendação de Oscar Wilde de que só os idiotas não julgam pela aparência. Com 68 anos, ele exibe cabelos compridos e barba grisalhas (cabelos mais para o branco amarelado) de quem não vai ao barbeiro desde o Festival de Woodstock. Na verdade, Didier Raoult mudou de estilo não faz tanto tempo assim. Um jornalista de perguntas certas, que escreveu um livro sobre o hospital universitário do qual o cabeludo é professor e diretor, indagou-lhe o motivo da mudança. Ele sorriu e respondeu: “Porque os irrita.”

Quem se irrita é o pessoal arcaico que faz testes e mais testes antes de colocar uma droga farmacêutica no mercado ou de passar a receitá-la para outra doença que não aquela para a qual ela foi criada. Não que Didier Raoult seja propriamente um charlatão. Ou um completo “Docteur Maboul” (Doutor Maluco), como alguns o chamam, segundo o Le Monde. Até deixar os cabelos e a barba crescerem, ele seguia o caminho da monotonia triunfal da ciência. Foi um dos descobridores, em 2003, dos vírus gigantes, que possibilitou avanços na virologia, genética e biologia evolutiva. Antes disso, nos anos 1980, Didier Raoult foi pioneiro nos estudos sobre as pequenas bactérias intracelulares. Ou seja, é um cientista de verdade com prova e contraprova. Ou era.

Com o tempo, a sua personalidade deu lugar ao excêntrico, na melhor das hipóteses. Negacionista do aquecimento global, por exemplo, ele chegou a escrever na revista semanal Le Point, onde mantinha uma coluna, que o buraco na camada de ozônio não aquecia o planeta, não. Que até o esfriava. E até o último 21 de janeiro, pelo menos, ele partilhava da mesma resolução de início de ano de Drauzio Varella: achar que a ameaça do novo coronavírus era uma histeria. Quando os chineses fecharam a província de Hubei, epicentro da pandemia do novo coronavírus, Didier Raoult disse no canal de Youtube da sua instituição que era “delirante” a ideia de que ali poderia nascer uma crise das proporções que vivemos atualmente. “Três chineses morrem e isso causa um alerta mundial. A OMS se mete nisso, fala-se disso na televisão e no rádio… Tudo isso é loucura, sem nenhuma lucidez”, afirmou. Soa familiar.

Em meados de fevereiro, ele continuava na mesma toada, até que, continua o Le Monde, anunciou o “fim do jogo” para a Covid-19. A solução era a cloroquina. Qual era a prova concreta disso? Experiências in vitro, não in vivo. Quem informou sobre esse detalhe de somenos não foi Didier Raoult, mas pesquisadores do hospital universitário que ele próprio dirige, em artigo publicado na revista Antiviral Research. Tornou-se urgente, então, produzir a toque de caixa resultados de experiências in vivo. Em 20 de março, eis que aparece um estudo na revista International Journal of Antimicrobial Agent. Um recorde de rapidez, como registra o Le Monde. Nele, Didier Raoult apontava que a cloroquina, administrada a trinta pacientes, havia obtido em quinze dias resultados positivos no tratamento de Covid-19. Pesquisadores independentes vasculharam as circunstâncias nas quais o experimento foi feito e verificaram que um paciente tratado com cloroquina havia morrido e sido excluído da amostragem, assim como foram descartados outros três cujas condições se agravaram e os levaram para a UTI. Nenhuma palavra sobre eles e nada também sobre o grupo de controle que não havia tomado cloroquina. Nesse grupo, nenhum paciente havia morrido ou ido parar na UTI. Tudo errado. Mais: o editor-chefe da revista que publicou o estudo é colaborador de Didier Raoult no hospital universitário de infectologia em Marselha e coautor.

Publica o jornal Le Monde que Didier Raoult tem uma estratégia simples para se tornar o “campeão do mundo” em citações em revistas científicas: “publicar a todo preço”. Não se trata de pagar, mas de escrever artigos atropeladamente. De acordo com o jornal, até 24 de março, ele havia publicado um total de 3.062 artigos de pesquisa científica. “Uma cifra fenomenal: grande parte dos pesquisadores publicam ao longo das suas carreiras menos artigos que o professor marselhês em alguns meses (mais de trinta desde o início do ano). Isso faz do microbiologista o mais citado internacionalmente”, diz o Le Monde. Em 2012, a revista Science revelou que, seis anos antes, um artigo assinado pela equipe de Didier Raoult fez com que a American Society for Microbiology o proibisse de publicar durante um ano qualquer artigo ou estudo em revistas editadas pela entidade. Motivo: suspeita de fraude.

Et pourtant, como diria Charles Aznavour… E, no entanto, a cloroquina está aí, em uso mais ou menos controlado contra a Covid-19, a depender das latitudes e do grau de desespero. Pode ser que funcione para alguns, evitando a reprodução do novo coronavírus que toma de assalto os pulmões; pode ser que apresse a morte de doentes (já há óbitos relacionados diretamente à substância); pode ser que não faça a menor diferença para outros que iriam morrer ou sobreviver de qualquer jeito. Eu tomaria cloroquina, deixo claro, se viesse a pegar a Covid-19 e não houvesse alternativa. Estamos entregues, neste momento, a gente como Didier Raoult. Se der mais certo do que errado, os protocolos e a ética científica irão para o espaço (lembre-se de que o buraco na camada de ozônio esfria a Terra possivelmente plana). Seria irônico, não fosse menos trágico. E, assim, seremos todos  infectologistas, e microbiologistas, e felizes para sempre, principalmente ele, o Doutor Maluco.

Arno Planner/FlickrArno Planner/FlickrDidier Raoult: os cabelos compridos e a barba são para “irritar”
 

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