Reprodução/TV SenadoProjetos que acabam com algumas regalias voltam à pauta do Congresso: que não seja jogo de cena político

Hora de rever privilégios

A crise do coronavírus é uma boa oportunidade para o país rediscutir as mordomias na máquina estatal
27.03.20

Auxílio-moradia para quem tem casa própria, tíquete-alimentação superior a um salário-mínimo, ajuda para comprar paletó, livros ou computadores, auxílio-mudança, vale-creche e até salário-esposa. Em um país com quase 14 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza, servidores públicos da elite do funcionalismo, conselheiros de tribunais de contas, parlamentares e ministros de tribunais superiores ostentam contracheques com uma coleção de penduricalhos – tudo sustentado, claro, com dinheiro público. A lista de benesses é tão extensa quanto vergonhosa. Com a crise econômica sem precedentes causada pela pandemia de coronavírus, empresários demitem e cortam salários, enquanto a equipe econômica do governo faz as contas para tentar salvar ao menos parte dos empregos. Diante do cenário de calamidade sanitária e econômica, a pergunta que martela a cabeça dos brasileiros beira a obviedade: a casta de privilegiados do setor público não vai se dignar a cortar na própria carne para ajudar a soerguer o país? Momento mais apropriado para liquidar de vez com as regalias não há.

Nos últimos dias, projetos de lei que acabam com privilégios ganharam força no Congresso Nacional. Se tudo não passar de jogo de cena político apenas para jogar um verniz sobre a já destroçada imagem dos parlamentares, será mesmo um avanço. Uma proposta que estava engavetada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e pode ser desempoeirada é a chamada PEC dos Penduricalhos. Ela proíbe que qualquer agente público que receba mais do que um quarto do vencimento de ministro do Supremo, ou seja, cerca de 10 mil reais, seja beneficiado com acréscimo salarial. Autor do projeto, o deputado Pedro Cunha Lima, do PSDB, diz que, pela primeira vez, enxerga um ambiente favorável ao debate sobre o tema. “O impacto orçamentário pode não ser muito grande, nem o suficiente para combater a grave crise do coronavírus, mas a gente precisa fazer um gesto à sociedade”, argumenta o parlamentar. “Não faz sentido pagar auxílio-creche a um procurador da República que já tem um salário altíssimo, enquanto mais de 70% das crianças pobres não têm esse atendimento”, argumenta.

A bancada do Partido Novo, que acompanha de perto o debate sobre a PEC dos Penduricalhos, encomendou um estudo sobre privilégios no funcionalismo público ao qual Crusoé teve acesso. A magistratura, segundo o levantamento, concentra parte expressiva das benesses. Só como complementos salariais, foram pagos a juízes e desembargadores 3,6 bilhões de reais no ano passado. “Descontando-se um terço de férias, 13º salário e auxílio-alimentação, que também são pagos ao trabalhador do setor privado, sobram aproximadamente 2,5 bilhões de reais gastos com outros complementos de salário em 2019″, diz um trecho do levantamento do Novo, que analisou mais de 200 mil contracheques disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça. O montante não leva em consideração o auxílio-saúde, lançado no final do ano passado, e que prevê o pagamento de um extra de até 10% do salário. Entre as justificativas para a criação do benefício, estava uma pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros segundo a qual 90% dos juízes e desembargadores estavam “mais estressados em 2019” do que no ano anterior – a saída para a declarada estafa foi um extra mensal de mais de 3 mil reais.

Agência SenadoAgência SenadoPEC dos Penduricalhos pode sair da gaveta: ideia é evitar acréscimo salarial
Outra regalia da magistratura e de integrantes do Ministério Público que custa caro aos cofres públicos é o tempo para desfrutar das férias: 60 dias. Para se ter uma ideia, só com o descanso de dois meses de juízes e procuradores, o país gasta quase 1,2 bilhão de reais por ano. O deputado Rubens Bueno, do Cidadania, quer acabar com a mamata. Ele é autor de uma PEC que proíbe que servidores ocupantes de cargo público tenham mais de 30 dias de férias por ano. O benefício é, na verdade, um subterfúgio para aumentar a remuneração, já que juízes, desembargadores e procuradores costumam vender parte das férias para garantir um 14º salário. Somada à miríade de penduricalhos, que por serem verba indenizatória não entram na conta do teto constitucional, a venda de férias contribui para que cerca de 70% dos magistrados ganhem acima do teto legal. A PEC de Rubens Bueno está arquivada desde 2018. Mas basta o aval do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para que haja a recriação de uma comissão especial e a proposta volte a tramitar. O lobby de entidades de juízes e procuradores, entretanto, é imenso. E parlamentares costumam temer represálias do Judiciário e do MP. “Em um momento de crise como este, em que temos de um lado a saúde da população e de outro lado os problemas econômicos, o Legislativo tem que dar o primeiro passo para garantir o respeito à Constituição. E ela determina que ninguém pode receber mais do que ministro do Supremo”, justifica Rubens Bueno. “Este é o gesto que o Legislativo precisa fazer urgentemente para a sociedade: mostrar que acabaram os privilégios e abusos”, acrescenta.

Ao rastrear mordomias do Poder Executivo, o estudo do Partido Novo revelou a existência de privilégios no pagamento de complementos salariais a algumas das categorias mais bem pagas do funcionalismo. Um deles é o bônus de eficiência da Receita Federal, repassado a auditores. A justificativa oficial é de que o extra estimula os servidores a desenvolverem o seu trabalho. “Esse argumento tem três problemas: vai ao encontro à ideia de subsídio, é um acréscimo de 3 mil reais a uma carreira já muito bem remunerada, com salário inicial de 21 mil reais, e não está atrelado ao desempenho individual do servidor, pagando a todos, inclusive aposentados, de maneira quase linear”, diz o estudo. Segundo o levantamento, o bônus de eficiência da Receita custa cerca de 1 bilhão de reais por ano. De forma semelhante, advogados públicos ganham honorários advocatícios por causas em que a União é vencedora – mais um penduricalho disfarçado de bônus de produtividade, que assegura pelo menos 6,5 mil reais mensais à categoria. A benesse custou 620 milhões de reais no ano passado.

O líder do Partido Novo na Câmara dos Deputados, deputado Paulo Ganime, defende que neste momento sejam priorizadas medidas de combate a privilégios que reduzam os gastos públicos. “Se a gente já estava em uma situação econômica grave e que exigia um ajuste fiscal, isso agora é imperativo. Todas as medidas para ajustar as contas públicas e direcionar recursos ao enfrentamento da crise são fundamentais”, justifica o parlamentar. “Assim como o trabalhador informal e o do setor privado, os empresários vão sofrer. É importante que os servidores públicos, que servem a população, não tenham privilégios, penduricalhos ou super salários”, afirma Ganime. O Novo também defende uma tesourada de até 50% no chamado cotão parlamentar, verba oferecida pela Câmara para a compra de passagens aéreas, alimentação, contratação de consultoria ou publicidade do mandato. Propõe, ainda, uma redução de 25% na verba de gabinete. Hoje, os deputados podem gastar 111 mil reais por mês com a contratação de assessores.

Luis Macedo/Câmara dos DeputadosLuis Macedo/Câmara dos DeputadosPaulo Ganime, líder do Novo: “Cortar privilégios agora se tornou imperativo”
A crise decorrente da pandemia do coronavírus é a grande oportunidade para que extravagâncias com o dinheiro público sejam finalmente revistas. No entanto, a pressão corporativista contra o fim das mamatas é grande. E gera situações que beiram o inacreditável, como a declaração de um procurador de Minas Gerais que classificou como “miserê” o salário de 24 mil reais. Autor da pérola, Leonardo Azeredo, na verdade, ganha bem mais do que isso: seus vencimentos médios mensais foram superiores a 60 mil reais em 2019, graças à abundância de penduricalhos e gratificações desconhecidas pelo trabalhador brasileiro. Nas assembleias legislativas dos estados e nas câmaras de vereadores, também são frequentes os casos de políticos que, mesmo em tempos bicudos como os atuais, se articulam para aprovar reajustes acima da média ou a criação de novas vantagens. Quando as tratativas nada republicanas vêm à tona, a revolta da população às vezes é suficiente para garantir um recuo.

Não são incomuns episódios burlescos como o do então presidente da Assembleia Legislativa do Amapá, Kaká Barbosa, que em 2018 tentou criar um auxílio-paletó de nada menos que 25 mil reais para os deputados. Ele alegou que os recursos eram indispensáveis a um “vestuário condigno” para os parlamentares. Enfurecidos com a ideia de Barbosa, moradores de Macapá fizeram um protesto inusitado: penduraram centenas de peças de roupas usadas diante da assembleia. A criação da benesse subiu no telhado. No ano passado, a cúpula do Tribunal de Justiça do Acre decidiu silenciosamente dobrar o auxílio-alimentação de magistrados para um valor equivalente a 10% dos subsídios. Com isso, um juiz poderia embolsar até quatro salários mínimos extras todos os meses. A Ordem dos Advogados do Brasil questionou a legalidade da medida e o Conselho Nacional de Justiça suspendeu o aumento.

Nas redes sociais, a cobrança mais frequente é para que os parlamentares cortem na carne e, prioritariamente, reduzam o próprio salário. Perguntado sobre o peso político da medida na quinta-feira, 26, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que todos os servidores e integrantes dos três poderes precisam contribuir e que o plano é promover cortes de forma igualitária, para reduzir as despesas da máquina pública. Ele lembrou que a folha de pagamento do Poder Executivo é de 170 bilhões ao ano. No Judiciário, esse valor é de 25 bilhões de reais e, no Legislativo, incluindo os salários dos parlamentares, o custo dos servidores é de 5 bilhões de reais. Mexer só no Parlamento, defendeu Maia, teria pouco impacto. “Não estamos aqui para fazer gesto simbólico para sociedade, estamos aqui para resolver o problema. E se é para resolver o problema, temos que fazer uma pactuação com os três poderes”, afirmou.

Fundador da organização Contas Abertas e especialista em fiscalização de gastos públicos do Brasil, Gil Castello Branco resume o problema enfrentado pelo país: “O estado brasileiro é paquidérmico, corporativo, ineficiente e caro”. A solução para a crise do coronavírus requer, além da mobilização de todas as esferas do governo, cortes efetivos e significativos de despesas. O fim de privilégios e das mordomias pode ser uma herança positiva de toda a devastação causada pelo vírus — se as excelências toparem mexer nos próprios bolsos, é claro. Ao contribuinte, cabe cobrar.

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