Adriano Machado/Crusoé

Sim, presidente, há fome no Brasil – e ela está mais perto do que o senhor imagina

19.07.19 17:14

“Dá dor de cabeça, dor na barriga, tonteira, desânimo, vontade de desmaiar. A fome é muito triste, moço. É dolorida.” A afirmação é de Ana Maria Paiva dos Santos, 39 anos, que mora em uma barraca de lona nos arredores do Palácio do Planalto, a sede do governo, onde na manhã desta sexta-feira, 19, o presidente Jair Bolsonaro disse a jornalistas que “passar fome no Brasil é uma grande mentira”.

Ana Maria é uma das dezenas de moradores de rua que passam seus dias perto, muito perto, da Praça dos Três Poderes e vivem de pedir comida e de revirar lixo.
“Muitas pessoas passam fome aqui. Passam muita necessidade. Como ele (Bolsonaro) fala que não tem fome, meu filho? Eu não vejo televisão, não sei ler nem escrever, mas muita gente passa fome no Brasil”, diz ela. Ana Maria mora sob uma estrutura de lona preta esticada sobre pedaços de pau à beira de uma avenida larga de onde é possível enxergar as torres do Congresso e os prédios enfileirados que abrigam os ministérios.

Ela está ali há anos, com um filho e três netos (na foto acima, um deles posa de máscara, a alguns metros da barraca). Todos dormem sobre pedaços de espuma amarela. Grande parte da comida que consomem vem dos prédios que abrigam o poder. Todos os dias, no começo da tarde, ela e outros tantos moradores de rua costumam aguardar os restos que são jogados no lixo por lanchonetes e restaurantes frequentados pelos funcionários do governo.

O lixo preferido, diz ela, é o do prédio que abriga o Comando da Marinha. “Às vezes a gente encontra até prato e garfo lá.” A água também vem das torneiras próximas aos ministérios, mas ultimamente tem faltado. Ana Maria afirma que, justamente para evitar o vai e vem dos moradores de rua por perto, vários dos prédios públicos daquele pedaço de Brasília passaram a cortar a água das torneiras que ficam do lado de fora.

Adriano Machado/CrusoéA panela de Ana Maria: restos de comida catados nos lixos da Esplanada
Nesta sexta-feira, na hora do almoço, quando Crusoé circulou por ali e conversou com os moradores, o almoço para uma das famílias se resumia a uma panela de feijão. No café da manhã, eles haviam comido alguns pães velhos que foram doados na véspera por alguém que passou. Em meia hora, dois carros pararam perto da barraca para deixar comida e roupas usadas para a família de Ana Maria.

As doações, aliás, são a razão da permanência da família por ali. Não fosse isso, teriam de encarar a fome que Bolsonaro disse não existir no país. “As pessoas deixam leite, biscoito, fralda, coberta. Mas tem muita gente que tem medo e nojo da gente também”, queixa-se Eduarda Silveira, de 42 anos, moradora de um conjunto de barracas montadas sobre o gramado verde de outra área próxima da Esplanada dos Ministérios, do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.

“Fome não existe para ele que é rico e tem tudo do bom e do melhor. A realidade nossa é outra”, diz Eduarda, baiana de Barreiras. Pior que sentir fome, diz ela, é ouvir os filhos dizerem que estão com fome – ou pedirem carne quando não tem. “Essa é a pior parte. Ver as crianças pedindo comida e não ter o que dar”, lamenta, ao lado de três sobrinhos com idades entre três e nove anos. Eduarda tem quatro filhos, todos menores. E todos vivem por ali, nas barracas.

Não muito longe está outra família, essa de migrantes pernambucanos. É provavelmente a que vive mais perto do Palácio do Planalto: 500 metros, mais ou menos. O grupo montou seu barraco sob uma mangueira, em um amplo terreno entre a Embaixada da Romênia e a Procuradoria Geral da Justiça Militar, um dos mais novos prédios públicos daquela parte da cidade. Ali, dizem, estão mais protegidos das constantes batidas da temida Agefis, a agência de fiscalização do governo do Distrito Federal.

Adriano Machado/CrusoéRosimeire no “quintal” de sua barraca: ao fundo, o prédio do Congresso
O cenário lembra o de uma pequena favela. Há cinzas de fogueiras que são acesas tanto para espantar o frio – as madrugadas de Brasília são frias nesta época do ano – quanto para aquecer a comida que catam e ganham. Uma cachorra, Chola, vive amarrada por uma corda ao tronco da árvore. É ela quem alerta o grupo sobre a aproximação de estranhos, especialmente à noite. No barraco mais próximo, também de lona preta, dormem três pessoas. A luta para comer é diária.

“Se não correr atrás, a gente passa fome”, diz Rosimeire da Silva Batista, de 53 anos. Na manhã desta sexta-feira, ela preparava em um balde restos de carne que conseguira na véspera pelos lixos da Esplanada. “Aqui a gente come a hora que der e o que tiver. Não tem horário de almoço e jantar.”

Nem Rosimeire e seus familiares tinham ouvido falar ainda da declaração de Bolsonaro. Quando souberam, todos riram, sem disfarçar o desapontamento. “Para ele não existe fome, né!? Ele tá de boa lá…”, ironizou Alcenor Pereira Damasceno, 65 anos, encostado na “cozinha” da barraca. A “despensa” é uma tábua torta sobre o qual colocam as doações e os restos coletados nas andanças de todo dia.

Já era início da tarde quando Bolsonaro tentou corrigir, em outra declaração pública, o que dissera pela manhã. “Olha, o brasileiro come mal. (É) Um país aqui que a gente não sabe por que pequena parte passa fome e outros passam mal ainda”, afirmou. Indagado se estava recuando do que afirmara horas antes, o presidente chiou: “Ah, pelo amor de Deus, se for para entrar em detalhe, em filigrana, eu vou embora. Eu não tô vendo nenhum magro aqui, tá certo? Temos problema alimentar no Brasil? Temos, não é culpa minha, vem de trás, estamos tentando resolver.”

Ana Maria, Eduarda, Rosimeire e Alcenor, com seus filhos, sobrinhos e netos, estão há décadas, entra governo e sai governo, esperando dias melhores. Eles em Brasília, bem perto do centro do poder, e outros milhões pelo país afora. Pelas contas de agências da ONU, no ano passado nada menos que 5 milhões de brasileiros estavam subnutridos. Sim, presidente, há fome no Brasil. Para ver, basta olhar lá fora.

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