Adriano Machado/Crusoé

Livro de Moro: ‘Se não vai ajudar, não atrapalhe’, disse Bolsonaro sobre decisão que beneficiou Flávio

30.11.21 07:33

A autobiografia “Sergio Moro – Contra o sistema da corrupção” (Editora Sextante), que chega nesta terça-feira, 30, às livrarias, mostra que o ex-juiz é “ele e sua circunstância”, como diz a máxima de Ortega y Gasset. Ou seja, para entender seus movimentos é preciso levar em consideração o que o circunda e o contexto histórico em que ele se insere.

Na obra, de 288 páginas, Moro faz questão de justificar cada um de seus passos. Desde que ascendeu à condição de principal magistrado da 13ª Vara Criminal de Curitiba, cuja primeira prova de fogo foi o caso Banestado e a mais proeminente foi a condução da Lava Jato, passando pelo ministério de Jair Bolsonaro, até o momento atual, em que se prepara para lançar-se à Presidência da República pelo Podemos. “Como juiz ou como ministro nunca deixei de fazer aquilo que acredito ser a coisa certa. Quero crer que que, em todos os momentos de decisão da minha vida profissional que apresento neste livro, eu tenha sempre feito a escolha certa segundo as informações que eu tinha à época”, escreve Moro em sua autobiografia.

No livro, para além da preocupação em esclarecer suas escolhas e atitudes em momentos nevrálgicos da história recente do país, Moro revela os bastidores da Lava Jato, defende seu legado, narra em detalhes o processo de fritura ao qual foi submetido nos meses que antecederam o rompimento com Jair Bolsonaro e joga luz sobre o esforço do presidente para proteger seus filhos, em especial o 01, Flávio Bolsonaro.

Num dos trechos da obra, o ex-ministro rememora a decisão do então presidente do STF, Dias Toffoli, de julho de 2019, de suspender liminarmente todas as investigações instauradas com base em relatórios do Coaf. A liminar de Toffoli beneficiou o primogênito do presidente da República, pois entre os processos suspensos estava o inquérito que apurava as transações financeiras do notório Fabrício Queiroz e do próprio Flávio Bolsonaro. Segundo narra Moro, a decisão foi comemorada no Planalto. “Enquanto o Supremo não resolvia a questão, havia o dilema de como, dentro do governo, seria possível questionar uma decisão judicial benéfica ao filho do presidente. Aquele era o momento em que o governante deveria adotar uma postura de estadista, colocando os interesses do país acima dos pessoais, ainda que o próprio filho fosse afetado”, escreve o ex-juiz.

Moro diz que optou por não falar publicamente sobre o caso, mas, dentro do governo, não havia como deixar o tema de lado. “Precisava demonstrar, internamente, a preocupação de que, se aquela decisão inicial do ministro Toffoli prevalecesse, seria um desastre para o país.” Foi quando, numa conversa com Bolsonaro, segundo o relato do ex-juiz, o presidente disse: “Se não vai ajudar, então não atrapalhe”. “Por uma questão pessoal, o presidente pedia a mim que ignorasse aquela séria ameaça ao sistema nacional de prevenção à lavagem de dinheiro”, afirma Moro.

Para ilustrar o processo de deterioração da relação com o presidente, Sergio Moro conta ainda que foi surpreendido com a maneira como Bolsonaro descreveu o ministro Gilmar Mendes, principal algoz da Lava Jato no Supremo, durante uma reunião ministerial ocorrida final de março de 2020. “O Moro que me perdoe, mas são ministros como o Gilmar Mendes que resolvem as coisas”, afirmou Bolsonaro na reunião, de acordo com o então titular da Justiça.

No mesmo dia do encontro com os ministros, o presidente havia recebido Gilmar num café da manhã no Palácio da Alvorada. “Era evidente a ironia daquelas palavras, vindas de um presidente que, na campanha eleitoral, defendera a Lava Jato. Segundo a imprensa, o presidente e o referido ministro se aproximariam, depois, ainda mais. Mas aí eu já não estava mais no governo”, relata o ex-juiz.

Em entrevista a Crusoé nesta segunda-feira, 29, Sergio Moro respondeu a perguntas sobre o livro. Eis o que ele disse:

O sr. passa boa parte do livro se defendendo de críticas que lhe são imputadas. Essa foi a motivação principal ao escrever o livro? O sr. sentiu necessidade de, diante dos ataques que pessoalmente vinha sofrendo, tecer esses esclarecimentos?
O livro é uma história do combate à corrupção. Um dos males do Brasil hoje é o sistema da grande corrupção aliada à impunidade. No livro, faço considerações de como isso atrasa nosso desenvolvimento e o bem-estar da população. Durante a Lava Jato esse sistema foi enfrentado de maneira eficaz. Depois, tentei consolidar esses avanços com minha ida ao governo. Mas achei pertinente relatar esses fatos e fazer esses esclarecimentos porque há uma tentativa em curso muito clara de falsear a história.

Hoje, Jair Bolsonaro diz que o sr. condicionou a troca no comando da Polícia Federal a sua indicação para uma vaga no STF. Em algum momento, desde o convite para que o sr. virasse ministro da Justiça, o assunto “indicação ao STF” foi tratado com o presidente?
Nunca assumi um cargo pensando em outro. E jamais esse tema foi tratado por mim. O presidente chegou a dar declarações públicas sobre isso, mas tenho muito claro que eu nunca condicionei uma coisa a outra. Nem falamos sobre esse assunto. Além do mais, se eu tivesse aceitado a interferência na Polícia Federal, eu estaria lá como suposto candidato ao Supremo. E eu preferi sair. O meu projeto era consolidar o combate à corrupção no ministério.

Numa determinada passagem do livro, o sr. especula que o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, não gostava muito do sr. porque havia sido investigado pela Lava Jato. Não é um problema que o sr. pode enfrentar agora como presidenciável, já que boa parte da classe política foi alvo da operação que o sr. comandou ?
Olha, durante a tramitação de projetos do Ministério da Justiça eu falei com dezenas de políticos. Parte relevante do projeto anticrime acabou sendo aprovada. Então sempre é possível. O que é importante é a gente estabelecer que é possível ter princípios e valores em torno dessas conversas. Até porque a governabilidade que foi criada baseada nesses modelos de cooptação – como mensalão, petrolão – nos entregou recessão, não desenvolvimento. Você adota essas práticas, a pretexto de alcançar uma governabilidade, mas o resultado disso são governos ruins.

No livro, o sr. fala em “ciclo virtuoso”, ao se referir ao modelo ideal de diálogo com o Congresso. É possível fazer ciclo virtuoso com Centrão, Valdemar Costa Neto, Arthur Lira?
Temos que dialogar com agentes políticos. Claro que é preciso analisar o histórico, a credibilidade desses políticos. Existem situações de incompatibilidade. O importante é ter, repito, princípios e valores. Isso já foi feito no passado. Já foi feito em outros países. Podemos escolher um governo melhor de governança e governabilidade. Nenhum país do mundo obteve êxito fundando sua forma de governo em corrupção. É um beco sem saída.

Ao narrar o processo de desgaste com Bolsonaro, o sr. diz: “Ouvi de algumas pessoas que Bolsonaro receava que eu saísse do governo e me tornasse um adversário nas eleições de 2022. Francamente, eu não tinha esses planos enquanto era ministro”. O que mudou de lá para cá para que o sr. colocasse seu nome à disposição para concorrer ao Planalto?
O que mudou é que há uma demanda por alternativas políticas. Temos dois extremos. Um governo onde ocorreu os dois dos maiores escândalos de corrupção da história e entregou a recessão e um governo que também estregará provavelmente uma recessão, com o aumento do desemprego e da fome, e desmantelou o combate à corrupção. É um chamado. É uma missão. Senti a necessidade de realizar esse enfrentamento, apresentando um projeto para o país. O Brasil não pode ser forçado a escolher no próximo ano entre dois pesadelos. O país merece ter sonhos e possibilidades. Eleição é tempo de esperança. As pessoas estavam desapontadas com o presente e com o futuro. O povo brasileiro merece ter alternativa a essas duas opções trágicas.

O sr. também faz uma crítica pesada ao que chama de “culto à personalidade”. O sr., de certa forma, não personifica isso, por ter sido tachado, como juiz da Lava Jato, de herói do combate à corrupção?
Eu fiz um trabalho na Lava Jato e posteriormente no Ministério da Justiça. No primeiro, fui exitoso no combate à corrupção e, no segundo, no enfrentamento ao crime organizado e na redução da criminalidade. Mas nunca incentivei qualquer culto à minha personalidade. Nunca me apresentei como uma ideia ou como um mito. Meu trabalho foi uma conquista da sociedade brasileira. Coloquei meu nome à disposição para liderar um projeto e que pretende ser de muitos. Bem diferente desses dois extremos.

O sr. escreve no livro que a decisão mais importante do STF em favor da Lava Jato foi a que permitiu em 2016 a execução da pena após a condenação em segunda instância. A mudança no entendimento da corte, então, foi a decisão mais prejudicial entre todas? O sr. acha que é fundamental retomá-la?
É fundamental retomá-la. Foi uma decisão que tem efeitos drásticos para a impunidade. Quando era ministro, trabalhei para que a decisão não fosse revertida. E era uma voz quase isolada no governo. Defendi no Congresso a aprovação de uma emenda ou de um projeto de lei. Não me acomodei. E fui fazer isso sozinho. Podemos retomar esse projeto com outra liderança, claro. Bolsonaro não tem mais legitimidade para falar sobre esse assunto. O ex-presidente Lula tampouco. Como Lula pode falar algo sobre combate à corrupção? Retomar a execução da pena após condenação em segunda instância é um compromisso absoluto de minha parte.

O sr. revela que ouviu dentro do governo que a soltura do Lula favorecia Jair Bolsonaro, por isso o presidente não criticou, como era esperado, o fim da prisão em segunda instância. De quem o sr. ouviu especificamente ?
Eram vozes correntes dentro do Palácio do Planalto. Prefiro não entrar em detalhes. Mas eu mantenho essa afirmação, mesmo que queiram me processar. Eles sabem que eu falo a verdade.

O sr. reforça o tempo todo no livro que o importante é “fazer a coisa certa”. Hoje, o sr. admite que foi uma escolha errada ir para o governo?
Não. Quando eu fui para o governo acreditava que tinha uma chance de dar certo. Sabia que ia haver uma reação do sistema político. A gente queria fazer reformas para manter avanços no combate à corrupção. Fui com essa expectativa. Infelizmente, não foi possível avançar, como digo no livro. A pretensão de fazer a coisa certa estava ali presente. Me arrependeria se fosse algo diferente. Fui para o governo com objetivos claros.

O sr. conta que suas ilusões em relação à postura do presidente no combate ao crime e à corrupção se desfizeram depois que, fugindo de seu comportamento habitual, o sr. pediu para que Bolsonaro vetasse trechos lei anticrime e ele se recusou a fazê-lo. Por que o sr. não rompeu com o governo ali?
Fiquei para preservar a Polícia Federal. Até havia falado ao então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, que não íamos mais nos iludir quanto às reais intenções desse governo. Mas a gente tinha a missão de proteger a PF. A PF precisa atuar sem qualquer interferência, e foi por isso que continuei até quando ficou inviável.

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