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EXCLUSIVO: O plágio de Kassio Marques

07.10.20 14:04

O currículo turbinado com ciclos de palestras que viraram “pós-doutorado” não é o único problema da carreira acadêmica de Kassio Marques, o escolhido de Jair Bolsonaro para a vaga de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. A dissertação de mestrado apresentada pelo desembargador à Universidade Autônoma de Lisboa tem trechos inteiros copiados de artigos publicados na internet por um advogado.

Kassio Marques concluiu a dissertação em 2015. Um levantamento feito por Crusoé nas 127 páginas do trabalho, que garantiu ao desembargador o título de mestre em direito, mostra que passagens inteiras são idênticas a trechos de textos do advogado Saul Tourinho Leal, integrante da banca de advocacia do ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto. Tourinho Leal é piauiense, assim como Kassio Marques.

A dissertação repete até um erro de português contido em um dos artigos do advogado – o que indica ter havido, na elaboração da dissertação, um “copia e cola” a partir dos textos de Saul Tourinho Leal.

Crusoé utilizou a ferramenta “Plagium”, disponível na internet, para identificar os trechos. Há mais de uma dezena de passagens da dissertação de Kassio Marques que reproduzem partes de artigos de Tourinho Leal, muitas sem tirar nem pôr palavras. Não há, no trabalho, qualquer referência ao advogado – ele não é citado nenhuma vez.

Para além dos indícios de plágio, na dissertação do desembargador escolhido pelo presidente da República para o Supremo há algo mais que chama atenção, e que põe em dúvida se foi ele mesmo quem produziu o trabalho: o arquivo do texto, disponibilizado na internet, registra o nome “Saul” como autor do documento (veja abaixo). É uma informação que leva à suspeita de que Saul Tourinho pode não apenas ter “inspirado” o trabalho de Kassio a ponto de ter passagens inteiras de seus artigos reproduzidas, mas ajudado o magistrado a escrever a dissertação. Saul ainda não foi localizado por Crusoé para falar sobre o assunto.

A varredura feita pela ferramenta, recomendada por instituições como a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a PUC-SP, e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ, mostra que a dissertação de Kassio Marques apresenta, ao todo, 46,2% de semelhança com outros textos já publicados. A ferramenta aponta risco “alto” de ocorrência de plágio acadêmico. Ao todo, há quatro artigos de Tourinho Leal com trechos reproduzidos, total ou parcialmente, na dissertação. Os textos do advogado foram publicados em um site jurídico em 2011 – quatro anos antes de Kassio entregar sua dissertação, portanto. A seguir, Crusoé traz alguns exemplos de trechos copiados.

Nas páginas 30 e 31, o trabalho apresentado por Kassio Marques à universidade lisboeta sob o título “Concretização Judicial do Direito à Saúde: um contributo à sua efetivação no Brasil a partir das experiências jurisprudenciais no Direito Comparado e nas matrizes teóricas portuguesas” diz o seguinte:

“Na Constituição da Índia, no seu art. 37, ao falar de direitos sociais, diz-se que as disposições contidas nesta Parte não devem ser efetivadas por nenhuma Corte, mas os princípios aqui estabelecidos são, entretanto, fundamentais para o governo do país e deve ser um dever do Estado aplicar esses princípios ao elaborar as leis. O constituinte estabeleceu previsão acerca do conteúdo meramente programático dos direitos sociais, não só endereçando-os exclusivamente ao governo do país, mas vedando, taxativamente, a inserção, do Poder Judiciário, nas discussões relativas à concretização do direito à saúde. Não foi o que aconteceu no Brasil.”

Um dos artigos do advogado Tourinho Leal traz o seguinte texto:

“A Constituição da Índia, no seu art. 37, ao falar de direitos sociais, diz-se que ‘as disposições contidas nesta Parte não devem ser efetivadas por nenhuma Corte, mas os princípios aqui estabelecidos são, entretanto, fundamentais para o governo do país e deve ser um dever do Estado aplicar esses princípios ao elaborar as leis’. No caso indiano o constituinte estabeleceu previsão expressa acerca do conteúdo meramente programático dos direitos sociais, não só endereçando-os exclusivamente ao governo do país, mas vedando, taxativamente, a inserção do Poder Judiciário nas discussões relativas à concretização do direito à saúde. Não foi o que aconteceu no Brasil”.

É justamente nessa parte que a dissertação de Kassio Marques reproduz, inclusive, um mesmo erro ortográfico de um artigo do advogado. Nos dois trabalhos, “Namíbia”, o país africano, aparece como “Naníbia”. “Por sua vez, p art. 101 da Constituição da Naníbia diz que os princípios da política de estado contidos neste Capítulo não devem ser, por si sós, exigíveis legalmente por qualquer Corte, mas deve, entretanto, guiar o governo na elaboração e aplicação das leis para dar eficácia aos objetivos fundamentais dos referidos princípios”, diz o trabalho assinado pelo desembargador.

No artigo de Tourinho Leal (foto abaixo), o texto é este: “O art. 101 da Constituição da Naníbia diz que “os princípios da política de estado contidos neste Capítulo não devem ser, por si sós, exigíveis legalmente por qualquer Corte, mas deve, entretanto, guiar o governo na elaboração e aplicação das leis para dar eficácia aos objetivos fundamentais dos referidos princípios”.

Reprodução

Há trechos da dissertação em que se nota certo esforço para mudar algumas palavras, mas mesmo nesses há partes inteiras copiadas. É o caso deste, às páginas 50 e 51 do trabalho apresentado por Kassio Marques:

“No estado do Piauí, no nordeste brasileiro, ao se tentar ter acesso à prestação de serviços médicos, os agentes do Estado realizam pesquisas nos cadastros mantidos pelas pessoas junto ao Ministério da Saúde. Caso se identifique que o doente é inscrito no SUS num outro Estado, é pouco provável que consiga ter acesso ao Sistema. O Ministério da Saúde, com a Portaria SAS/MS nº 39, de 06 de fevereiro de 2006, instituiu a descentralização do processo de autorização dos procedimentos de tratamento de saúde que fazem parte Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade – CNRAC. No momento no qual se precisa de procedimentos nas especialidades contempladas na CNRAC, cuja oferta seja existente na Unidade da Federação solicitante, mas insuficiente, a solicitação só ocorre após a avaliação técnica da insuficiência pelo Ministério da Saúde. Esta avaliação será solicitada à Coordenação-Geral de Regulação e Avaliação CGRA/DRAC/SAS/MS que responderá no prazo deaté 45 (quarenta e cinco) dias. É obrigatório o uso do Cartão Nacional de Saúde para a solicitação. Somente os Estados com ausência de serviços nas especialidades de Cardiologia, Oncologia, Ortopedia, Neurocirurgia e Epilepsia, poderão efetuar solicitação na CNRAC. Cada Estado tem a sua Central Estadual de Regulação de Alta Complexidade (CERAC), responsável pela autorização do procedimento de saúde ao paciente do SUS.”

O texto publicado anteriormente por Saul Tourinho Leal é o seguinte:

“No Piauí, ou se é piauiense, ou não se tem acesso a atendimento médico de alta complexidade do SUS. Isso porque, ao tentar ter acesso à prestação de serviços médicos, os agentes do Estado realizam pesquisas nos cadastros mantidos pelas pessoas junto ao Ministério da Saúde. Caso identifiquem que o doente é inscrito no SUS num outro Estado, é remoto o acesso ao Sistema. O Ministério da Saúde, com a Portaria SAS/MS nº 39, de 06 de fevereiro de 2006, instituiu a descentralização do processo de autorização dos procedimentos de tratamento de saúde que fazem parte Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade – CNRAC. No momento no qual se precisa de procedimentos nas especialidades contempladas na CNRAC, cuja oferta seja existente na Unidade da Federação solicitante, mas insuficiente, a solicitação só ocorre após a avaliação técnica da insuficiência pelo Ministério da Saúde. Esta avaliação será solicitada à Coordenação-Geral de Regulação e Avaliação – CGRA/DRAC/SAS/MS que responderá no prazo de até 45 (quarenta e cinco) dias. É obrigatório o uso do Cartão Nacional de Saúde para a solicitação. Somente os Estados com ausência de serviços nas especialidades de Cardiologia, Oncologia, Ortopedia, Neurocirurgia e Epilepsia, poderão efetuar solicitação na CNRAC. Cada Estado tem a sua Central Estadual de Regulação de Alta Complexidade (CERAC), responsável pela autorização do procedimento de saúde ao paciente do SUS.”

Crusoé ainda não conseguiu contato com Kassio Marques. Nesta terça-feira, 7, mostramos que o desembargador apresenta em seu currículo um suposto título de pós-doutor que a Universidade de Messina, na Itália, em resposta a uma consulta feita pela revista, diz se tratar de um “certificado de participação” em um “ciclo de palestras”.

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