Adriano Machado/CrusoéA sede da Presidência da República: perseguição a "inimigos"

A autenticidade factual em ‘Tormenta’, o livro-reportagem de Thaís Oyama

14.01.20 00:54

Dona de um olhar acurado, uma apuração consistente e um texto que margeia o irretocável, a jornalista Thaís Oyama em Tormenta – O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos passeia pelos principais momentos do primeiro ano do governo Bolsonaro incólume sob o ângulo ideológico.

Marcel Proust dizia que “todo leitor é um leitor de si mesmo”. O escritor, ao contrário, quando se presta a publicar um livro-reportagem, não pode escrever para o próprio deleite, sob o risco de aplicar à realidade o filtro do seu desejo. Oyama escapa dessa sempre tentadora armadilha e cumpre bem o papel ao qual se propõe: o de, no avanço pela informação exclusiva, do detalhe imperceptível a olho nu, municiar o leitor com a maior abundância de minúcias possível a respeito de um governo muito popular, mas pouco familiarizado ao exercício do poder – e, como resultado dessa condição inescapável, em constante efervescência política, para o bem e para o mal.

Na obra de 272 páginas, algumas de prender o fôlego, Tormenta revela como opera a gestão Bolsonaro, quais forças colidem entre si por cada milímetro de espaço na Esplanada dos Ministérios e no Palácio do Planalto, os atores políticos que o presidente considera em mais alta conta e quem desperta no chefe do Executivo sentimentos de temores e desconfianças, os conchavos intramuros inerentes a qualquer governo, e como o caldo de cultura – ou incultura – no qual ele e os filhos foram forjados influenciaram os destinos do país no ano que passou.

Há revelações inéditas e fatos inconfessáveis – eventuais conclusões incômodas, favoráveis demais ou condescendentes de menos não são alienadas de quem lê. Num dos capítulos mais intrigantes do livro, o dedicado a Carlos Bolsonaro, intitulado “Zero Dois”, a autora traz os bastidores da relação mercurial do presidente com o segundo filho. Por exemplo, quando Carlos se apropriou das senhas do pai nas redes sociais e manteve por 24 horas na conta oficial do presidente no YouTube um vídeo recheado de petardos contra o vice-presidente Hamilton Mourão, os dois discutiram ao telefone. Na manhã seguinte, um domingo, depois de obrigado a deletar o vídeo, Carlos sumiu de casa. “Jair Bolsonaro ficou transtornado. Teclou para os amigos do filho perguntando sobre seu paradeiro. Telefonou para o próprio e lhe mandou seguidas mensagens de WhatsApp — todas sem acusação de recebimento. Naquele dia, o presidente não desgrudou do celular e mal conseguiu despachar”.

Não seria a primeira vez, narra Oyama. Durante a campanha, Carluxo, como é conhecido, ameaçou ir embora para nunca mais voltar, caso o pai insistisse em nomear Gustavo Bebianno como ministro da Secretaria-Geral da Presidência. Na ocasião, meses antes de cair em desgraça e ser apeado do governo, Bebianno venceu a queda-de-braço. Não sem provocar avarias na relação pai e filho. Em protesto, Carlos cortou a comunicação com o pai e, mais uma vez, Bolsonaro ficou “fora de si” com o sumiço dele. De acordo com o livro, o presidente cultiva o temor de que o “Zero Dois”, “usuário de medicamentos para estabilização de humor, faça uma besteira”. Talvez por isso a relutância de Bolsonaro em desagradá-lo.

Foi para fazer um afago no filho, por exemplo, que, segundo Oyama, Bolsonaro alçou Alexandre Ramagem à direção da Abin, contrariando o general Valério Stumpf, então secretário executivo do Gabinete de Segurança Institucional. Carlos ainda quis emplacar, sem sucesso, o primo Léo Índio num cargo em comissão DAS 5, o segundo posto mais dispendioso da estrutura federal. Acabou vetado pelo general Santos Cruz. “Carlos ficou furioso e guardou em banho-maria a vingança pelo veto ao primo”, narrou a jornalista. Sim, o general, mais adiante, seria aniquilado pelo próprio Carluxo.

Outra relação sobre a qual Thaís Oyama joga luz é a desfrutada entre Bolsonaro e o presidente do STF, Dias Toffoli. Os dois se conheceram no longínquo ano de 2001, durante uma viagem à Amazônia, mas foi depois da eleição e da eclosão do caso Queiroz que seus interesses e corações se entrelaçaram. O cupido foi a advogada Karina Kufa, amiga de Toffoli e advogada do PSL. “Desde então, Toffoli se transformou no mais improvável novo amigo de infância do ex-capitão”, afirma Oyama. De janeiro a setembro, segue a jornalista, os dois se reuniram ao menos sete vezes. Quem conhece o presidente da República, narra a autora, afirma que um dos indicativos de sua intimidade com interlocutores é o número de palavrões que Bolsonaro troca com eles. No caso de Toffoli, diz o texto, “o fluxo atinge o grau dez e começa antes mesmo de assessores deixarem a sala”. É neste capítulo, em especial, que a jornalista relembra o episódio da censura imposta a Crusoé. “A reportagem (O amigo do amigo de meu pai) não fazia nenhuma acusação ao presidente do STF, limitava-se a revelar o apelido pelo qual o identificava Marcelo Odebrecht. Ainda assim, Toffoli se sentiu ofendido e determinou a Alexandre de Moraes que tomasse providências”, atesta Oyama.

Nesse mesmo contexto, a obra polvilha novas pitadas de pimenta sobre os dois polos de poder do governo, por essencialmente populares, mas não necessariamente antagônicos: de um lado o ministro da Justiça, Sergio Moro, do outro, Bolsonaro. Segundo ela, o presidente pensou em demitir Moro em agosto passado. O chefe do Executivo teria cogitado exonerá-lo logo após o ex-juiz criticar a decisão de Dias Toffoli de travar as investigações iniciadas com base em dados do Coaf, blindando o senador Flávio Bolsonaro – filho “01” do presidente – no caso Queiroz. “Vou pagar para ver”, chegou a dizer o mandatário. Bolsonaro, no entanto, foi demovido da ideia pelo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno. De acordo com a jornalista, Heleno já havia esgotado seu arsenal de argumentos em favor de Sergio Moro, mas tentou descarregar uma última bala. “Se demitir o Moro, o seu governo acaba”, disse o militar à época. Ao encaixar um elogio ao ministro em discurso na ONU, Bolsonaro mostrou que havia entendido a mensagem de Heleno.

Nem sempre, porém, o presidente se dobrou aos conselhos de seus auxiliares. Um militar, segundo o livro, define Bolsonaro com um neologismo: “inassessorável”. Para justificar o epíteto, a obra narra um episódio capaz de ilustrar uma espécie de teimosia atávica presidencial, em que ele não se esforça para fazer ouvidos moucos a conselhos ululantes de tão óbvios. Em julho de 2018, treinado para uma entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o então candidato foi informado de que seria questionado sobre seu livro de cabeceira. “Diz que é uma biografia do Churchill”, sugeriu Bebianno, então assessor de campanha e presidente do PSL. Ao que Bolsonaro respondeu: “Esse nome eu não vou lembrar”. “Então diz que é a Bíblia”, replicou Bebianno. Bolsonaro, na hora, aquiesceu. Indagado pelos jornalistas, respondeu sem titubear: “A verdade sufocada”, do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. “Os assessores do candidato se entreolharam num silêncio resignado”: Bolsonaro não havia feito o dever de casa.

Já Oyama, como se nota, foi muito além do dever de casa jornalístico ao pelear de maneira discreta por todo ano de 2019 pelo eixo Brasília-Rio de Janeiro a fim de desvelar o que os novos inquilinos do poder preferem manter estrategicamente ou mesmo por instinto longe dos raios solares. O governo pode até não ser encarado sob outro prisma depois do livro, previsto para ser lançado no próximo dia 20. Mas ao buscar caprichar nas tintas da autenticidade factual, a obra faz com que o leitor despeça-se dela mais bem informado sobre o irrequieto primeiro ano da gestão Bolsonaro do que entrou.

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